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“Videolização”: a banalização do cinema

A banalização do cinema na era do excesso é o mote para uma série de crónicas sobre “A Videolização”, numa abordagem crítica sobre a evolução da 7ª arte — onde o cinema deixou de ser o centro da experiência e passou a ser apenas mais um produto audiovisual. Um fenómeno com décadas, mas agora acelerado por uma lógica de consumo instantâneo e produção massiva.

 

retro TV

Do Ecrã à Sala de Estar: A Génese da “Videolização”

Tudo começou com a televisão. Primeiro a preto e branco, mais tarde a cores. Com ela, os filmes das salas de cinema entraram em casa pela primeira vez — ainda timidamente, em sessões especiais, aos domingos à tarde ou em noites especiais. Era raro, era um acontecimento. Ver um filme em casa não substituía a sala escura: apenas a prolongava. A televisão era uma extensão da experiência cinematográfica, não uma concorrente. O filme continuava a ser uma obra a merecer atenção, reverência, silêncio.

Depois, vieram os leitores de vídeo. O VHS tornou os filmes alugáveis, colecionáveis, rebobináveis. A cassete passava de mão em mão. Seguiram-se o Betamax, o DVD, o Blu-Ray. O cinema domesticava-se. Já não era preciso esperar pela grelha da RTP ou pela sessão das dez. O filme estava ali, disponível, a qualquer momento. Mas mesmo assim, o gesto de ver um filme ainda carregava um certo ritual. Escolhia-se o título, preparava-se a sala, apagavam-se as luzes. A experiência era íntima, mas respeitosa. Havia um início, meio e fim.

Foi aí que começou a videolização: a transição do cinema como evento coletivo para o filme como objeto de consumo doméstico. Ver cinema já não exigia deslocação, nem partilha com desconhecidos, nem bilhete pago à entrada. Bastava o comando na mão e algum tempo livre. A experiência deixou de ser excepcional e tornou-se habitual. E, ao tornar-se habitual, começou a perder algo do seu poder.

Hoje, a transformação está completa. As plataformas de streaming ofereceram ao cinema a ubiquidade. Está em todo o lado: no telemóvel durante a viagem de metro, no portátil enquanto se faz tempo entre reuniões, no tablet encostado ao frasco de sal no balcão da cozinha. O filme já não nos espera: está lá, sempre disponível. E, por isso mesmo, perdeu urgência.

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O espectador de hoje já não entra num espaço para ver cinema — traz o ecrã no bolso. Já não interrompe o ritmo da vida para se entregar à narrativa — é o filme que se adapta ao ritmo da vida. Pode-se pausar, adiantar, rever, abandonar. Ver em partes. Ver por cima. Ver em fundo.


É aqui que o cinema se banaliza. Não na obra em si, mas na forma como a consumimos. O que antes era experiência torna-se distração. O que era evento transforma-se em conteúdo. O que se partilhava em silêncio, partilha-se agora com ruído de fundo.

A videolização não é apenas uma mudança de suporte. É uma transformação profunda no modo como vemos — e vivemos — o cinema. Uma mudança de hábitos, de expectativas, de relação com a arte. E é sobre isso que esta série de crónicas se debruça: sobre a diluição do espanto, a perda do ritual, o perigo da abundância, a erosão do cuidado. Não para condenar o presente, mas para o pensar com olhos críticos. Porque o cinema ainda existe — mas o mundo que o rodeia já não é o mesmo. E talvez seja tempo de perguntar: o que estamos realmente a perder?



Próximos capítulos:
II. Mostras, Sessões e Festivais: Cinema ou Projeção de Boa Vontade?
III. Streaming: O Cinema Que Se Perde no Comando
IV. A Sala Resiste: O Cinema Como Último Reduto
V. Do VHS à IA: O Futuro da Videolização

Ricardo Lopes

Começou a caminhar nos alicerces de uma sala de cinema, cresceu entre cartazes de filmes e película. E o trabalho no meio audiovisual aconteceu naturalmente, estando presente desde a pré-produção até à exibição.

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