2024 – O Ano de todas as edições de BD
O mercado português de banda desenhada sofre mudanças e expande. E a comunidade muda também, a nível autoral e em número de leitores e coleccionadores. À medida que perdemos autores veteranos e que novas gerações lêem a sua primeira BD, também velhos leitores regressam por via de romances gráficos mais direcionados às suas sensibilidades adultas ou simplesmente por nostalgia. Em 2024 tivemos BD para todos os gostos e para todas as carteiras, num verdadeiro festim editorial que evidencia a saúde do sector.
Antes de tecer considerações sobre o ano editorial, permitam-me contextualizar este artigo: embora seja mais conhecido do público pelo meu trabalho como autor*, houve um período (longo) em que o meu gosto por análise estatística (…não me perguntem donde isso vem) me levou a colaborar com o Central Comics, que não só foi o primeiro portal noticioso do país, mas decerto aquele com actividade mais abrangente no virar do século, seguido pelo webite da Bedeteca de Lisboa, gerido por João Paulo Cotrim (1965-2021) e por Marcos Farrajota.
É difícil expressar aos novos geeks a grande influência que o CC exerceu na BD portuguesa, não só por criar um polo noticioso que agregava destaques que cobriam tanto as editoras profissionais como os esforços independentes, como pela importância que teve na criação de relações entre artistas através do seu Fórum de Discussão, numa altura em que ainda não haviam redes sociais. O CC prestou um serviço público variado e qualquer leitor acima dos trinta anos sabe que o sector da BD não seria o que é actualmente não fosse a prevalência do website no mercado editorial e na comunidade autoral lusitana no começo do novo milénio.
Pela minha parte, desde praticamente o início do portal que contribuí com críticas e artigos, participando também no júri do Troféus Central Comics, numa fase intermédia em que o prémio precisava do apoio de divulgadores e críticos com as leituras em dia. Já não colaboro no CC há doze anos, mas durante a primeira década do website fui responsável pela recolha de dados sobre edições profissionais e independentes, que também serviam a operacionalidade do TCC, que então, à falta da internet mais prestativa que hoje em dia temos, exigia exaustivas investigações no terreno, a vasculhar newsletters, bancas de jornais e livrarias de toda a espécie, na procura da mais ínfima pepita de informação.
É por ter participado na investigação sobre BD entre 2002 e 2012, a par dos colegas Geraldes Lino (1936-2019) e Leonardo de Sá, e me ter envolvido na redação de análises anuais ao serviço do Central Comics e Bedeteca de Lisboa, assim como do BDjornal e outras revistas, a razão porque disponho de dados comparativos sobre o recorde editorial que foi observado nessa década, em 2005, e o recorde atingido este ano.
A premissa é tão-somente esta: 2024 foi o ano com maior número de sempre de BD publicada em Portugal.
Mesmo permitindo a falha da inclusão dos fanzines mais recônditos – um lado do sector que foi refrescado por novos talentos que se apresentam nas inúmeras feiras de arte e nas convenções que se multiplicam no nosso panorama –, que com facilidade somariam uma trintena ou mais de títulos mas cuja confirmação não consta nesta investigação, observamos 520 títulos publicados em 2024. Há vinte anos, com metade de editoras a operar no país e muito menos editores independentes, tivemos 490 álbuns em 2005 – incluindo todos os fanzines. Na altura, foi um marco notável.
É de sublinhar também que, ao contrário da actual tendência que por vezes leva os editores a optar por compilar em tomos integrais dois ou mais álbuns, há vinte anos cada livro representava apenas 1 obra. Por essa métrica, mais 31 títulos devem ser somados ao total de 2024; ou seja, tecnicamente atingimos as 551 obras publicadas. E isto, repito, sem quantificar os fanzines mais clandestinos.
Falemos do presente estado do mercado português: Segundo o balanço feito por empresas de sondagem internacionais, os principais mercados livreiros na Europa cresceram desde os anos da pandemia mundial e, de acordo com peritagem da APEL (Associação Portuguesa de Editores e Livreiros) reportada pelo Pres. Pedro Sobral (1973-2024), também as expectativas por parte das Feiras do Livro de Lisboa e do Porto foram superadas nos últimos anos, ultrapassando os 100 mil visitantes em 2020 e mais de um milhão em 2024. Este vertiginoso aumento de público foi acompanhado no volume de vendas e a subida foi atribuída ao “boom de proporção não negligenciável” da BD e manga, que tiveram em Portugal a sua mais expressiva afirmação percentual.
Esta prosperidade editorial é celebrada em boa hora, pois, como que a pontificar este excelente ano, 2024 marca ainda a primeira celebração do Dia Nacional da Banda Desenhada, a 18 de Outubro. Esta iniciativa foi submetida pelo partido Livre e aprovada unanimemente pela Assembleia da República em Setembro, após uma proposta da Academia Nacional das Belas-Artes, que tem como responsáveis na área da BD os autores e pedagogos Paulo Monteiro e Penim Loureiro, e o arquitecto Manuel Couceiro da Costa, que em 2023 já havia reconhecido a banda desenhada como “forma superior de expressão cultural e artística”.
Entre as 551 edições apura-se um número incomum de obras originais – 174 obras portuguesas, o triplo face ao que é habitual em cada ano. Parte desta soma vem da colecção Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, que injectou uma dúzia de álbuns nas livrarias, e da expressiva quantidade de antologias, tanto produzidas em formatos profissionais como por via independente, numa tendência que se vem a afirmar nos últimos anos e que em 2024 representa 12% das edições globais, sendo 11% de origem portuguesa.
É também de ressalvar que 74 das edições portuguesas são fanzines no sentido clássico do termo, pelo que apenas cem das obras portuguesas representam edições em formato de livro, sejam de grande ou de menor tiragem.
No geral, trata-se de uma quantidade inacreditável de criações originais, na maioria com livros de grandes tiragens e de excelente produção, que no passado só foi esboçada através da soma da vertente fanzineira da edição. Ainda, é de apontar que dos 174 títulos em causa cerca de dezasseis resultam de parcerias com autores estrangeiros, com predominância para artistas e de naturalidade brasileira.
Dezoito dos 174 títulos portugueses são reedições – não edições redux, por vezes indicadas como Edição Definitiva – e 9% da soma global do ano representa reedições. Trata-se de tendência cada vez mais vulgar.
Outra tendência preponderante no país, mas tecnicamente inquantificável, é a prática de micro-tiragens, usualmente na casa das 100 a 300 unidades. Os editores fazem-no como modo de acautelar o investimento nas edições e para optimizar encargos como armazenamento e perecibilidade do produto. Infelizmente, não há suficientes dados fornecidos pelos editores para estabelecer padrões neste aspecto.
Em termos de comunidade artística portuguesa, contribuíram para o mercado cerca de cem autores, que se apresentam como autores completos ou como artistas, e mais vinte argumentistas; não quantifico aqui os colaboradores em antologias, de difícil cálculo, mas que decerto elevariam a soma para 200 autores. Deste grupo de 120 autores apenas 25% são mulheres, mas é no flanco feminino que se regista mais talentos estreantes.
A concluir, uma última nota de interesse: todo o manga publicado – seja dirigido ao grande público ou a leitores juvenis – já perfaz 25% do total de edições em 2024. A tendência é de que tal vá aumentar. Sobre os restantes tipos de BD, as obras europeias representam 32% do mercado, as obras americanas 5%, o género juvenil 10% e o humor 6%.
Naturalmente, estes surtos editoriais acusam sempre um crescendo e um declínio. Sem dados alusivos a anos mais recentes que nos informem devidamente em que ponto da curva estamos, o meio milhar de obras constatados este ano pode bem ser o zénite desta década, assim como poderá ser o início de um novo patamar.
[A versão integral desta reportagem está disponível em DanielMaia-Art.blogspot, neste link]
Artista de The Boy in the Bot vol1 e CoBrA: Operação Goa, e editor das antologias Abril, Cravos Mil, Aurora Boreal em Reflexos Partilhados e Outras Bandas.
Em 2004 a Asa, a Booktree e a Devir também encheram as livrarias de Banda Desenhada e infelizmente todos conhecemos o resultado.
Está a editar-se sem critério de qualidade, por vezes a preços elevados, mas os leitores / compradores não são tolos nem possuem uma carteira infinita.
Se formos a observar com atenção há imensos títulos que se acumulam na maioria das estantes das grandes superfícies, pois qualquer que seja a promoção a falta de qualidade e os preços altos afastam qualquer tipo de publico, em especial os novos leitores.
É certo que os Booktokers / Bookstagrammers descobriram recentemente que é apelativo apresentar Novelas Gráficas nas suas lives, mas lá está, recebem, na sua maioria, os livros de borla das editoras, não os compram, e se preciso for, vão depois vendê-los nas Vinteds e Olxs por tuta e meia ao seus seguidores.
O Manga vai continuar a prosperar, concordo, mas as editoras tem de parar de investir em manga de menor qualidade (Leya / Gradiva esta é para vocês) porque estão basicamente a criar monos para ocupar espaço nas livrarias.
O que se investe em mangas de menor qualidade pagava uns quantos álbuns de BD portuguesa que é o que verdadeiramente vende bem nas editoras mais pequenas e que as grandes teimam em não querer apostar por acharem ser muito “arriscado”.
Vejo com agrado a aposta da Penguin em autores nacionais e acho sinceramente que é a única editora que vai conseguir ter verdadeiros lucros nos próximos tempos e vincar a sua presença neste mercado de nicho.
Todas as outras editoras têm que se renovar em termos de mentalidade editorial pois continuam a editar como em 2004 se fazia, isto é, sem planos a longo prazo e com uma estratégia publicitária deficitária baseada na oferta de livros a bloggers que se limitam a fazer copy paste de press releases (agora fazem-no em lives, mas vai dar ao mesmo).
Continua igualmente inexistente a proximidade das editoras com as escolas.
Penso que a Devir seja a única que tem um programa de apresentação de livros nas escolas. Todas as outras não se dão ao esforço pois as obras que editam também são, digamos a verdade, nada acessíveis ao bolso de jovens leitores. É aí que o Manga dá a machadada final em todos os outros géneros. Um pai facilmente dispensa 10€ para um miúdo levar e comprar um manga numa feira do livro escolar, acima desse valor já se arranja desculpas.
Faz falta um concurso de BD nas escolas patrocinado pelas grandes editoras como fazem para outros géneros. Seria sem dúvida uma forma especial de chegar aos jovens leitores.
Concluo dizendo que este meio milhar de edições me assusta, porque temo que o investimento avultado que se fez, signifique o fim precoce de algumas casas editoriais que não obtenham o retorno de que necessitam para dar continuidade ao seu negócio.
Olá Ana.
Não partilho das suas considerações mais pessimistas mas concordo que há muito por melhorar no sector, transversalmente. Também sei que poucas são as editoras que têm capacidade para se estender nas acções que refere, de promoção etc; se a algumas lhes falta capital para isso, a outras falta infraestrutura para alocarem recursos e funcionários para essas actividades…
Contudo, o artigo integral (disponível no meu blogue) atesta precisamente a que o mercado de BD vive anos de alta rentabilidade. Só os editores saberão se a receita cobre os investimentos, mas o que não está em causa é que hoje se vende mais BD do que em momento algum nas últimas décadas. Em parte, o crescimento do segmento editorial manga e infanto-juvenil em pouco (ou nada) beliscam as restantes publicações de BD, já que se trata de “novo público descoberto”; ou seja, os leitores que sustentam a quota de manga e infantil do sector antes pouca BD genérica compravam. Arrisco até dizer que, respectivamente, consumiam manga estrangeiro ou livros ilustrados, em vez de BD. E a prova disso é que perante a grande dimensão de mercado que essas edições ocupam, tal não tem detido as editoras de BD doutros géneros de continuarem a editar – antes pelo contrário, cada vez editam mais, e até se observa mais editoras estrangeiras a investir na publicação em português!…
Também não concordo que “se edite sem critério ou qualidade”. Não sei se a senhora se refere a critérios de acabamento/produção dos livros ou a matéria de conteúdo, mas se o tiver dito em alusão ao primeiro caso, discordo em completo, porque é notável que as edições portuguesas cada vez mais primam por bom papel, boa gramagem, maiores dimensões etc. Já nem há ressalva sobre publicar a cor, algo que há vinte anos ainda era um factor determinante.
Sobre o conteúdo da edição, tal já será um assunto subjectivo. Mas a meu ver cada vez contamos com mais autores de qualidade e tal está evidente no sucesso das obras. Por outro lado, também temos cada vez mais talentos estreantes, mas acho injusto avaliarmos o trabalho desses com a mesma bitola de quem tem anos de experiência editorial…
Sobre o seu comentário final, a única coisa que posso dizer é que, a nível de bastidores, não sei de nenhuma editora portuguesa que esteja presentemente a sofrer pela competição adicional. Óbvio, haverá alguma “canibalização” derivada da maior oferta, mas tal aconteceu também há vinte e dez anos atrás, e as editoras mais fortes continuam entre nós; e as que sucumbiram, não se devem a falta de vendas, mas de má estratégia comercial das próprias.
DM