“Videolização”: Cinema ou Boa Vontade
Seguimos com a série de crónicas sobre a banalização do cinema na era do excesso: “A Videolização”. Trata-se de uma abordagem crítica sobre a evolução cinematográfica — onde o cinema deixou de ser o centro da experiência e passou a ser apenas mais um produto audiovisual.
Mostras, Sessões e Festivais: Cinema ou Projecção de Boa Vontade?
De repente, há “festivais de cinema” por todo o lado. Em cidades grandes e pequenas, em vilas, freguesias, auditórios improvisados e jardins ao luar. À primeira vista, poderíamos aplaudir: o cinema democratizou-se. Já não é preciso sair da terra para ver filmes, basta esperar pela mostra local, pelo concurso de curtas, pela sessão ao ar livre, pelas palmas voluntariosas de uma associação cultural em missão de serviço público. O cinema veio ter connosco. E que maravilha — ou talvez não.
Chama-se a isto, com pompa e circunstância, acesso. Mas talvez devêssemos chamá-lo por outro nome: videolização.
O que está a acontecer é uma transição subtil e silenciosa — da experiência cinematográfica para o gesto audiovisual. O cinema, enquanto arte que respeita o som, a imagem e a imersão da sala escura, está a ser substituído por sessões onde se projecta em paredes caiadas, com colunas adquiridas no centro comercial e adequadas para som de conferências, e onde o ecrã é por vezes de pior definição do que a televisão que temos na sala de estar. O que sobra? Boa vontade. O que falta? Cinema.
E falta mais do que isso. Agora, temos o habilidoso do projector de vídeo — que, num assomo de criatividade técnica, decide “afinar” a imagem, desvirtuando por completo a intenção do director de fotografia. As sombras desaparecem, os contrastes são esmagados, os tons ganham outra cor, outro tom, outro tempo. A história ainda lá está, é verdade. Mas passada num outro mundo visual, que já não é o do realizador.
E o som? Numa espécie de alquimia sonora de feira, os canais ambiente (surround) aparecem no ecrã e o canal central — aquele onde a voz deve ser clara e frontal — emerge das colunas laterais, porque o técnico improvisado decidiu que “assim ouve-se melhor”. Só que o desenho sonoro do filme era outro. A espacialidade, a profundidade, a intenção narrativa do som… tudo se perde. O espectador ouve, sim. Mas ouve mal, ouve errado, ouve uma versão adulterada do que o cinema quis dizer.
A profissionalização da arte de projectar desapareceu. O projeccionista — o Alfredo, aquele mestre silencioso da cabine, conhecedor de lentes, formatos, enquadramentos da perfuração e som — deu lugar ao voluntário do HDMI. A fita desapareceu. E com ela, a precisão, a responsabilidade, a reverência. Agora, exibe-se. Como calhar.
E desengane-se quem pense que isto acontece apenas na sessão da pequena freguesia, com cadeiras de plástico e pipocas caseiras. Não. Isto também acontece nos chamados “festivais de cinema” que a imprensa portuguesa promove e noticia com entusiasmo. Acontece nas grandes salas portuguesas, em auditórios, em centros culturais com cartazes modernos e redes sociais ativas. Acontece com filmes de autor. Acontece com filmes premiados. Acontece, porque se perdeu o sentido do que é mostrar cinema — e se confundiu a arte com passar um ficheiro de vídeo.
Mais grave ainda é que muitas dessas sessões são organizadas sem qualquer tipo de licenciamento legal. Exibem-se obras sem recorrer às distribuidoras ou aos detentores de direitos comerciais ou intlectuais. Em alguns casos, são filmes sem registo intelectual; noutros, são cópias obtidas de forma duvidosa, apresentadas sem autorização, sem relatório de exibição, sem contratos, sem compensação aos autores. E tudo isto em espaços públicos, com dinheiro público, com pompa de cartaz cultural.
É urgente dizê-lo: a videolização não é só um problema técnico ou estético. É também um problema jurídico e ético. A ausência de fiscalização institucional, a inexistência de exigência legal quanto às condições de exibição e a falta de profissionais certificados no manuseamento de equipamento e conteúdos estão a transformar o cinema num simulacro. Não são respeitadas normas técnicas. Não há auditoria. Não há controlo de qualidade. Exibe-se o que se quer, como se pode, quando apetece.
Onde deveria haver projecção com soluções certificadas, há improviso. Onde deveria haver supervisão profissional, há palpite. Onde deveria haver respeito pelos criadores e pelos espectadores, há desleixo.
A videolização é o novo nome da ignorância bem-intencionada. E como todas as formas de ignorância que se mascaram de entusiasmo, é perigosa. Porque banaliza. Porque degrada. Porque confunde. E porque, no fim, acaba por apagar o que dizia querer celebrar.
Há cada vez mais mostras. Mas há cada vez menos cinema.
Capítulo disponível:
I. Do Ecrã à Sala de Estar: A Génese da “Videolização”
Próximos capítulos:
III. Streaming: O Cinema Que Se Perde no Comando
IV. A Sala Resiste: O Cinema Como Último Reduto
V. Do VHS à IA: O Futuro da Videolização
(imagens meramente ilustrativas, partilhadas em redes sociais pelos promotores dos eventos)
Começou a caminhar nos alicerces de uma sala de cinema, cresceu entre cartazes de filmes e película. E o trabalho no meio audiovisual aconteceu naturalmente, estando presente desde a pré-produção até à exibição.