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“Conclave”: quando o sagrado revela o humano

“É melhor uma fé imperfeita, mas humilde, do que uma fé forte e presunçosa. O Senhor não busca cristãos perfeitos.” Estas palavras, proferidas pelo Papa Francisco durante o Regina Coeli de 24 de Abril de 2022, ecoam como um sussurro de sabedoria que transcende o tempo e o espaço, tocando o âmago da alma humana. Ressoam, suaves e certeiras, na narrativa de “Conclave”, de Edward Berger, encontrando morada na interpretação contida e profundamente emotiva de Ralph Fiennes como o Cardeal Thomas Lawrence.

Em meio ao turbilhão de decisões políticas e eclesiásticas, uma alma perde-se. O Cardeal, homem de fé, vê-se a naufragar nas águas gélidas da dúvida. A sua crença, que outrora se erguia como uma rocha firme, esfarela-se como areia fina a escorrer-lhe por entre os dedos. E ele descobre-se, enfim, apenas um homem perdido na sua própria busca de sentido.

Conclave
Conclave

O sentido da fé

A fé, na sua pureza, é como a raiz profunda que sustém uma árvore em plena tempestade. É a força invisível que, mesmo quando o vento uiva e o mundo estremece, nos mantém firmes. Mas, quando essa raiz se desfaz, o solo torna-se instável, e o vazio que se abre é tão vasto quanto a terra sem fim.

O Cardeal Lawrence é o espelho da nossa humanidade mais crua: nele, testemunhamos não apenas a perda da fé religiosa, mas a perda de si mesmo, daquilo que lhe dá sentido no mundo. É um homem dilacerado, que já não sabe onde encontrar consolo, nem onde depositar as suas esperanças. A sua crise não é apenas pessoal; é existencial, e a sua dor ressoa como um eco surdo no coração daqueles que o contemplam… ainda que poucos se importem.

O embrião da mudança

Mas, como toda a dor verdadeira, também a de Lawrence guarda em si o embrião da mudança. No seio das pressões do conclave, entre as sombras das intrigas que serpenteiam pelos corredores do Vaticano, o Cardeal carrega dentro de si um combate que ninguém vê.

Não é uma batalha contra dogmas ou inimigos visíveis, mas contra o abismo silencioso que se abre quando já não se acredita. E, paradoxalmente, é nesse esvaziamento — nessa consciência da ruína interior — que algo começa, subtilmente, a germinar. Aquilo que parecia a ruína total, a queda irreversível da fé, revela-se como húmus para outra forma de crença, mais viva, mais humana.

À semelhança do rio de Heráclito, Lawrence descobre que a fé não é mármore, mas água — não uma certeza inquebrantável, mas uma corrente que se molda às margens do tempo. É, como nós, feita de hesitação e esperança, de falência e recomeço. E mesmo quando tudo se obscurece, ela escava subterrâneos por onde, um dia, voltará a fluir.

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A via-crúcis de Lawrence

A via-crúcis de Lawrence é um caminho de redenção, mas não é uma redenção fácil. Não há atalhos para a cura, não há palavras mágicas que o libertem da sua dor. Mas, aos poucos, ele começa a compreender que a fé verdadeira não reside na certeza absoluta, mas na aceitação do erro, da fragilidade, da dúvida. Ele começa a aceitar que, talvez, a verdadeira fé seja a que não teme perder-se, pois é através da perda que ela se reinventa, que se refaz, que renasce.

É nesse lento processo de reconstrução que Lawrence encontra uma verdade simples e profunda: a fé não exige perfeição, não exige respostas definitivas. A fé, na sua essência, é feita de tentativas, de recomeços, de fragilidade e de coragem. A sua busca já não é por um ideal inatingível, mas pela verdade que reside no coração humano. Ele começa a olhar para si mesmo com mais compaixão, com mais gentileza, e, ao fazê-lo, começa a ver o outro com os mesmos olhos. A sua caminhada não é apenas de regresso a Deus, mas de regresso a si mesmo, à sua própria humanidade.

Os labirintos da alma humana

Ao longo do filme, não assistimos apenas a uma encenação de bastidores da Igreja, com os seus jogos de poder e disputas veladas, quase como se estivéssemos diante de um reality show em tons soturnos; somos, sobretudo, conduzidos aos labirintos da alma humana.

É nesse terreno íntimo que a dúvida deixa de ser um inimigo e se revela como possibilidade. O Cardeal Lawrence, ao perder a fé que o sustentava, encontra algo mais essencial: a consciência da sua própria vulnerabilidade. E é nesse reconhecimento doloroso, mas libertador — que ele compreende que a fé não está na rigidez da certeza, mas na capacidade de, mesmo ferido, continuar a caminhar.

E assim, ao final da sua peregrinação, Lawrence não se torna um homem perfeito, mas um homem novo. Não encontrou a resposta final para o seu dilema, mas encontrou a capacidade de viver com a dúvida, de a aceitar como parte de si. A sua fé, agora, já não é intransigente, mas flexível, como o vento que se adapta ao campo. Reconcilia-se não só com Deus, mas com a sua própria fragilidade, e é nesse reencontro que, finalmente, se encontra. Não num dogma, mas num abraço acolhedor, profundo e humano.

A fé como reconstrução

“Conclave” recorda-nos que a fé, tal como a vida, exige constante reconstrução. Não é uma certeza imutável, mas um terreno em movimento, onde cada dúvida tem o peso de uma oração.

O filme de Berger não romantiza a fé, nem a apresenta como um escudo infalível. Pelo contrário, mostra-a como algo vulnerável, exposto às fissuras do tempo, da responsabilidade e da consciência. No centro da narrativa está um homem, o Cardeal Lawrence, que, diante das estruturas sólidas da Igreja, confronta o colapso silencioso da sua própria crença.

O que “Conclave” propõe, com delicadeza e firmeza, é que há valor, talvez até salvação, em reconhecer esse abalo. E que, mesmo no vazio, no silêncio ou na hesitação, pode residir um caminho possível. Não de regresso ao que se era, mas de descoberta do que se pode ainda ser.

Brasileiro, Tenório é jornalista, assessor de imprensa, correspondente freelancer, professor, poeta e ativista político. Nomeado seis vezes ao prémio Ibest e ao prémio Gandhi de Comunicação, iniciou sua carreira no jornalismo ainda durante a graduação em Geografia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL), escrevendo colunas sobre cinema para sites, jornais, revistas e portais do Nordeste e Sudeste do Brasil.

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