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O cinema que se extingue

Há um momento, no cinema, em que o ecrã fica sem imagem e o público ainda não se levantou.
É o instante entre o fim do filme e o regresso à vida — uma suspensão breve, onde tudo parece possível e irremediável.

Portugal vive hoje esse momento. As luzes acenderam-se nas salas, mas as plateias já estavam sem espectadores.

Cinemas NOS Amoreiras

 

Desde o início do ano, trinta e sete ecrãs de cinema deixaram de brilhar. Outros nove estão a caminho do apagão definitivo. É como se o país, devagar, fosse perdendo as janelas por onde via o mundo em grande.

 

Maia, Gaia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal, Funchal — uma geografia do silêncio, uma constelação de luzes que se apagam uma a uma. No lugar das bilheteiras, surgem lojas com promoções imperdíveis, vitrines com artigos e consumo rápido. Uma loja de artigos desportivos substituirá o antigo cinema do AlgarveShopping. A metáfora escreve-se sozinha: o ecrã dá lugar ao espelho.

 

Cinemas Oeiras Parque

 

Durante anos, o cinema em Portugal sobreviveu como extensão do centro comercial. Era o pretexto nobre para uma tarde de lazer, a alma cultural da praça de alimentação.

 

Mas o público mudou — ou dispersou-se. O streaming abriu uma sala em cada casa, o sofá tornou-se plateia, o comando substituiu o bilhete. Os filmes continuam a estrear, mas o ritual desapareceu.
A magia do escuro foi trocada pelo conforto da luz azulada do televisor.

 

As greves em Hollywood, o recuo dos estúdios, a saturação das séries — tudo pesa. Mas a crise é mais funda: é cultural.

 

O cinema — essa arte de ver juntos — perdeu o privilégio de reunir. Já não é o centro de nada; é o vestígio de um tempo em que as histórias pediam multidão.

 

 

Até o maior complexo cinematográfico do país começa a encolher. O Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, foi autorizado a desafetar nove das suas vinte salas de cinema, por falta de viabilidade económica.

 

Segundo a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), o atual número de espectadores e a reduzida oferta de filmes apelativos não justificam o funcionamento de tantas salas. O Ministério da Cultura deu luz verde à decisão, numa espécie de reconhecimento formal de que o modelo dos multiplex já não sustenta o seu próprio peso.

 

O mesmo processo repete-se noutros centros comerciais, em Viana do Castelo e Braga, ambos da Sonae Sierra. A tendência parece irreversível: onde antes se viam filmes, hoje procuram-se as novas tendências do catálogo comercial.

UCI Cinemas

 

Há, no entanto, uma camada menos visível desta crise — a da própria técnica.

 

Os velhos projetores de película duravam meio século, com paciência e óleo. Os digitais, esses, têm a vida breve das máquinas modernas: dez anos, se tanto. E quando avariam, ninguém os conserta — canibalizam-se entre si, como se o cinema tivesse entrado na fase em que sobrevive apenas devorando-se.

 

Os equipamentos envelhecem depressa, os ficheiros mudam de formato, as exigências tecnológicas aumentam. E cada manutenção custa o preço de uma sala cheia que já não esgota.

 

Durante a transição para o digital, o Estado e os distribuidores internacionais ajudaram. Agora, não. Cada exibidor que fica sem meios fecha as portas e desliga as luzes. O negócio já não compensa a manutenção da memória.

 

Nas bilheteiras, a matemática é cruel: menos espectadores, bilhetes mais caros, pipocas a preço de jantar, filmes disponíveis nas plataformas um mês depois. A experiência cinematográfica, que outrora prometia o inatingível, tornou-se aparentemente replicável.

 

Em casa, a imagem é 4K, o som é envolvente — e a distração é gratuita.

 

No fim de semana em que Springsteen: Deliver Me From Nowhere estreou, esperava-se que o público regressasse às salas. Não regressou. Nem o rock salva a liturgia perdida. E as estrelas, que esgotavam sessões, já não atraem multidões. Os filmes não fracassam sozinhos; é o próprio pacto entre o espectador e o cinema que se desfaz.

 

Se nas grandes cidades os cinemas encolhem, no interior o apagão é quase total.

 

Beja, Bragança e Portalegre já não têm exibição comercial regular e diária. Dependem das autarquias — heróis silenciosos que mantêm acesas as lâmpadas dos auditórios municipais.

 

Em Beja, a única sala comercial do distrito, a Melius Beja, fechou a 1 de agosto, após uma fiscalização da IGAC. Promete reabrir, mas o exibidor confessa-se desanimado.

 

Em Bragança, as salas privadas fecharam há mais de uma década. Hoje, apenas o Auditório Municipal Paulo Quintela insiste em projetar filmes, num “esforço enorme” da câmara. Nos concelhos vizinhos — Mogadouro, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, Vimioso, Miranda do Douro, Vila Flor — são também os municípios que alimentam a projeção. Às vezes há casa cheia, dizem, mas é mais pela persistência do gesto do que pela força do mercado.

 

Portugal volta a dividir-se entre litoral iluminado e interior às escuras — como se o cinema, tal como o país, sofresse da mesma desigualdade antiga.

 

Oppenheimer
A película de “Oppenheimer” em projector de 70mm

 

Há, contudo, quem insista em sonhar. Alguns cinemas investem em som Dolby Atmos, projeção laser, conforto e nostalgia. Outros sonham com um regresso simbólico à película, como se o grão fosse uma forma de oração.

 

Mas o futuro da exibição — e talvez do cinema — não dependerá da resolução, nem do som, mas da emoção. Devolver ao ato de ver um filme o sentido de acontecimento. Fazer da ida ao cinema um gesto raro, necessário, quase sagrado.

 

Porque, no fim de tudo, há uma frase que continua a ser verdade, mesmo dita em voz baixa, mesmo escrita à luz das saídas de emergência:

 

Para ver cinema, vá ao cinema.

 

Antes que seja tarde — e o feixe de luz deixe de iluminar o ecrã.

 

Vale a pena recordar que, em fevereiro de 2024, noticiávamos as dificuldades enfrentadas por algumas salas de cinema.

Há um momento, no cinema, em que o ecrã fica sem imagem e o público ainda não se levantou.
É o instante entre o fim do filme e o regresso à vida — uma suspensão breve, onde tudo parece possível e irremediável.

Portugal vive hoje esse momento. As luzes acenderam-se nas salas, mas as plateias já estavam sem espectadores.

Cinemas NOS Amoreiras

Desde o início do ano, trinta e sete ecrãs de cinema deixaram de brilhar. Outros nove estão a caminho do apagão definitivo. É como se o país, devagar, fosse perdendo as janelas por onde via o mundo em grande.

Maia, Gaia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal, Funchal — uma geografia do silêncio, uma constelação de luzes que se apagam uma a uma. No lugar das bilheteiras, surgem lojas com promoções imperdíveis, vitrines com artigos e consumo rápido. Uma loja de artigos desportivos substituirá o antigo cinema do AlgarveShopping. A metáfora escreve-se sozinha: o ecrã dá lugar ao espelho.

Cinemas Oeiras Parque

Durante anos, o cinema em Portugal sobreviveu como extensão do centro comercial. Era o pretexto nobre para uma tarde de lazer, a alma cultural da praça de alimentação.

Mas o público mudou — ou dispersou-se. O streaming abriu uma sala em cada casa, o sofá tornou-se plateia, o comando substituiu o bilhete. Os filmes continuam a estrear, mas o ritual desapareceu.
A magia do escuro foi trocada pelo conforto da luz azulada do televisor.

As greves em Hollywood, o recuo dos estúdios, a saturação das séries — tudo pesa. Mas a crise é mais funda: é cultural.

O cinema — essa arte de ver juntos — perdeu o privilégio de reunir. Já não é o centro de nada; é o vestígio de um tempo em que as histórias pediam multidão.

Até o maior complexo cinematográfico do país começa a encolher. O Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, foi autorizado a desafetar nove das suas vinte salas de cinema, por falta de viabilidade económica.

Segundo a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), o atual número de espectadores e a reduzida oferta de filmes apelativos não justificam o funcionamento de tantas salas. O Ministério da Cultura deu luz verde à decisão, numa espécie de reconhecimento formal de que o modelo dos multiplex já não sustenta o seu próprio peso.

O mesmo processo repete-se noutros centros comerciais, em Viana do Castelo e Braga, ambos da Sonae Sierra. A tendência parece irreversível: onde antes se viam filmes, hoje procuram-se as novas tendências do catálogo comercial.

UCI Cinemas

Há, no entanto, uma camada menos visível desta crise — a da própria técnica.

Os velhos projetores de película duravam meio século, com paciência e óleo. Os digitais, esses, têm a vida breve das máquinas modernas: dez anos, se tanto. E quando avariam, ninguém os conserta — canibalizam-se entre si, como se o cinema tivesse entrado na fase em que sobrevive apenas devorando-se.

Os equipamentos envelhecem depressa, os ficheiros mudam de formato, as exigências tecnológicas aumentam. E cada manutenção custa o preço de uma sala cheia que já não esgota.

Durante a transição para o digital, o Estado e os distribuidores internacionais ajudaram. Agora, não. Cada exibidor que fica sem meios fecha as portas e desliga as luzes. O negócio já não compensa a manutenção da memória.

Nas bilheteiras, a matemática é cruel: menos espectadores, bilhetes mais caros, pipocas a preço de jantar, filmes disponíveis nas plataformas um mês depois. A experiência cinematográfica, que outrora prometia o inatingível, tornou-se aparentemente replicável.

Em casa, a imagem é 4K, o som é envolvente — e a distração é gratuita.

No fim de semana em que Springsteen: Deliver Me From Nowhere estreou, esperava-se que o público regressasse às salas. Não regressou. Nem o rock salva a liturgia perdida. E as estrelas, que esgotavam sessões, já não atraem multidões. Os filmes não fracassam sozinhos; é o próprio pacto entre o espectador e o cinema que se desfaz.

Se nas grandes cidades os cinemas encolhem, no interior o apagão é quase total.

Beja, Bragança e Portalegre já não têm exibição comercial regular e diária. Dependem das autarquias — heróis silenciosos que mantêm acesas as lâmpadas dos auditórios municipais.

Em Beja, a única sala comercial do distrito, a Melius Beja, fechou a 1 de agosto, após uma fiscalização da IGAC. Promete reabrir, mas o exibidor confessa-se desanimado.

Em Bragança, as salas privadas fecharam há mais de uma década. Hoje, apenas o Auditório Municipal Paulo Quintela insiste em projetar filmes, num “esforço enorme” da câmara. Nos concelhos vizinhos — Mogadouro, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, Vimioso, Miranda do Douro, Vila Flor — são também os municípios que alimentam a projeção. Às vezes há casa cheia, dizem, mas é mais pela persistência do gesto do que pela força do mercado.

Portugal volta a dividir-se entre litoral iluminado e interior às escuras — como se o cinema, tal como o país, sofresse da mesma desigualdade antiga.

Oppenheimer
A película de “Oppenheimer” em projector de 70mm

Há, contudo, quem insista em sonhar. Alguns cinemas investem em som Dolby Atmos, projeção laser, conforto e nostalgia. Outros sonham com um regresso simbólico à película, como se o grão fosse uma forma de oração.

Mas o futuro da exibição — e talvez do cinema — não dependerá da resolução, nem do som, mas da emoção. Devolver ao ato de ver um filme o sentido de acontecimento. Fazer da ida ao cinema um gesto raro, necessário, quase sagrado.

Porque, no fim de tudo, há uma frase que continua a ser verdade, mesmo dita em voz baixa, mesmo escrita à luz das saídas de emergência:

Para ver cinema, vá ao cinema.

Antes que seja tarde — e o feixe de luz deixe de iluminar o ecrã.

Vale a pena recordar que, em fevereiro de 2024, noticiávamos as dificuldades enfrentadas por algumas salas de cinema.

Há um momento, no cinema, em que o ecrã fica sem imagem e o público ainda não se levantou.
É o instante entre o fim do filme e o regresso à vida — uma suspensão breve, onde tudo parece possível e irremediável.

Portugal vive hoje esse momento. As luzes acenderam-se nas salas, mas as plateias já estavam sem espectadores.

Cinemas NOS Amoreiras

Desde o início do ano, trinta e sete ecrãs de cinema deixaram de brilhar. Outros nove estão a caminho do apagão definitivo. É como se o país, devagar, fosse perdendo as janelas por onde via o mundo em grande.

Maia, Gaia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal, Funchal — uma geografia do silêncio, uma constelação de luzes que se apagam uma a uma. No lugar das bilheteiras, surgem lojas com promoções imperdíveis, vitrines com artigos e consumo rápido. Uma loja de artigos desportivos substituirá o antigo cinema do AlgarveShopping. A metáfora escreve-se sozinha: o ecrã dá lugar ao espelho.

Cinemas Oeiras Parque

Durante anos, o cinema em Portugal sobreviveu como extensão do centro comercial. Era o pretexto nobre para uma tarde de lazer, a alma cultural da praça de alimentação.

Mas o público mudou — ou dispersou-se. O streaming abriu uma sala em cada casa, o sofá tornou-se plateia, o comando substituiu o bilhete. Os filmes continuam a estrear, mas o ritual desapareceu.
A magia do escuro foi trocada pelo conforto da luz azulada do televisor.

As greves em Hollywood, o recuo dos estúdios, a saturação das séries — tudo pesa. Mas a crise é mais funda: é cultural.

O cinema — essa arte de ver juntos — perdeu o privilégio de reunir. Já não é o centro de nada; é o vestígio de um tempo em que as histórias pediam multidão.

Até o maior complexo cinematográfico do país começa a encolher. O Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, foi autorizado a desafetar nove das suas vinte salas de cinema, por falta de viabilidade económica.

Segundo a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), o atual número de espectadores e a reduzida oferta de filmes apelativos não justificam o funcionamento de tantas salas. O Ministério da Cultura deu luz verde à decisão, numa espécie de reconhecimento formal de que o modelo dos multiplex já não sustenta o seu próprio peso.

O mesmo processo repete-se noutros centros comerciais, em Viana do Castelo e Braga, ambos da Sonae Sierra. A tendência parece irreversível: onde antes se viam filmes, hoje procuram-se as novas tendências do catálogo comercial.

UCI Cinemas

Há, no entanto, uma camada menos visível desta crise — a da própria técnica.

Os velhos projetores de película duravam meio século, com paciência e óleo. Os digitais, esses, têm a vida breve das máquinas modernas: dez anos, se tanto. E quando avariam, ninguém os conserta — canibalizam-se entre si, como se o cinema tivesse entrado na fase em que sobrevive apenas devorando-se.

Os equipamentos envelhecem depressa, os ficheiros mudam de formato, as exigências tecnológicas aumentam. E cada manutenção custa o preço de uma sala cheia que já não esgota.

Durante a transição para o digital, o Estado e os distribuidores internacionais ajudaram. Agora, não. Cada exibidor que fica sem meios fecha as portas e desliga as luzes. O negócio já não compensa a manutenção da memória.

Nas bilheteiras, a matemática é cruel: menos espectadores, bilhetes mais caros, pipocas a preço de jantar, filmes disponíveis nas plataformas um mês depois. A experiência cinematográfica, que outrora prometia o inatingível, tornou-se aparentemente replicável.

Em casa, a imagem é 4K, o som é envolvente — e a distração é gratuita.

No fim de semana em que Springsteen: Deliver Me From Nowhere estreou, esperava-se que o público regressasse às salas. Não regressou. Nem o rock salva a liturgia perdida. E as estrelas, que esgotavam sessões, já não atraem multidões. Os filmes não fracassam sozinhos; é o próprio pacto entre o espectador e o cinema que se desfaz.

Se nas grandes cidades os cinemas encolhem, no interior o apagão é quase total.

Beja, Bragança e Portalegre já não têm exibição comercial regular e diária. Dependem das autarquias — heróis silenciosos que mantêm acesas as lâmpadas dos auditórios municipais.

Em Beja, a única sala comercial do distrito, a Melius Beja, fechou a 1 de agosto, após uma fiscalização da IGAC. Promete reabrir, mas o exibidor confessa-se desanimado.

Em Bragança, as salas privadas fecharam há mais de uma década. Hoje, apenas o Auditório Municipal Paulo Quintela insiste em projetar filmes, num “esforço enorme” da câmara. Nos concelhos vizinhos — Mogadouro, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, Vimioso, Miranda do Douro, Vila Flor — são também os municípios que alimentam a projeção. Às vezes há casa cheia, dizem, mas é mais pela persistência do gesto do que pela força do mercado.

Portugal volta a dividir-se entre litoral iluminado e interior às escuras — como se o cinema, tal como o país, sofresse da mesma desigualdade antiga.

Oppenheimer
A película de “Oppenheimer” em projector de 70mm

Há, contudo, quem insista em sonhar. Alguns cinemas investem em som Dolby Atmos, projeção laser, conforto e nostalgia. Outros sonham com um regresso simbólico à película, como se o grão fosse uma forma de oração.

Mas o futuro da exibição — e talvez do cinema — não dependerá da resolução, nem do som, mas da emoção. Devolver ao ato de ver um filme o sentido de acontecimento. Fazer da ida ao cinema um gesto raro, necessário, quase sagrado.

Porque, no fim de tudo, há uma frase que continua a ser verdade, mesmo dita em voz baixa, mesmo escrita à luz das saídas de emergência:

Para ver cinema, vá ao cinema.

Antes que seja tarde — e o feixe de luz deixe de iluminar o ecrã.

Vale a pena recordar que, em fevereiro de 2024, noticiávamos as dificuldades enfrentadas por algumas salas de cinema.

Há um momento, no cinema, em que o ecrã fica sem imagem e o público ainda não se levantou.
É o instante entre o fim do filme e o regresso à vida — uma suspensão breve, onde tudo parece possível e irremediável.

Portugal vive hoje esse momento. As luzes acenderam-se nas salas, mas as plateias já estavam sem espectadores.

Cinemas NOS Amoreiras

Desde o início do ano, trinta e sete ecrãs de cinema deixaram de brilhar. Outros nove estão a caminho do apagão definitivo. É como se o país, devagar, fosse perdendo as janelas por onde via o mundo em grande.

Maia, Gaia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal, Funchal — uma geografia do silêncio, uma constelação de luzes que se apagam uma a uma. No lugar das bilheteiras, surgem lojas com promoções imperdíveis, vitrines com artigos e consumo rápido. Uma loja de artigos desportivos substituirá o antigo cinema do AlgarveShopping. A metáfora escreve-se sozinha: o ecrã dá lugar ao espelho.

Cinemas Oeiras Parque

Durante anos, o cinema em Portugal sobreviveu como extensão do centro comercial. Era o pretexto nobre para uma tarde de lazer, a alma cultural da praça de alimentação.

Mas o público mudou — ou dispersou-se. O streaming abriu uma sala em cada casa, o sofá tornou-se plateia, o comando substituiu o bilhete. Os filmes continuam a estrear, mas o ritual desapareceu.
A magia do escuro foi trocada pelo conforto da luz azulada do televisor.

As greves em Hollywood, o recuo dos estúdios, a saturação das séries — tudo pesa. Mas a crise é mais funda: é cultural.

O cinema — essa arte de ver juntos — perdeu o privilégio de reunir. Já não é o centro de nada; é o vestígio de um tempo em que as histórias pediam multidão.

Até o maior complexo cinematográfico do país começa a encolher. O Arrábida Shopping, em Vila Nova de Gaia, foi autorizado a desafetar nove das suas vinte salas de cinema, por falta de viabilidade económica.

Segundo a Inspeção-Geral das Atividades Culturais (IGAC), o atual número de espectadores e a reduzida oferta de filmes apelativos não justificam o funcionamento de tantas salas. O Ministério da Cultura deu luz verde à decisão, numa espécie de reconhecimento formal de que o modelo dos multiplex já não sustenta o seu próprio peso.

O mesmo processo repete-se noutros centros comerciais, em Viana do Castelo e Braga, ambos da Sonae Sierra. A tendência parece irreversível: onde antes se viam filmes, hoje procuram-se as novas tendências do catálogo comercial.

UCI Cinemas

Há, no entanto, uma camada menos visível desta crise — a da própria técnica.

Os velhos projetores de película duravam meio século, com paciência e óleo. Os digitais, esses, têm a vida breve das máquinas modernas: dez anos, se tanto. E quando avariam, ninguém os conserta — canibalizam-se entre si, como se o cinema tivesse entrado na fase em que sobrevive apenas devorando-se.

Os equipamentos envelhecem depressa, os ficheiros mudam de formato, as exigências tecnológicas aumentam. E cada manutenção custa o preço de uma sala cheia que já não esgota.

Durante a transição para o digital, o Estado e os distribuidores internacionais ajudaram. Agora, não. Cada exibidor que fica sem meios fecha as portas e desliga as luzes. O negócio já não compensa a manutenção da memória.

Nas bilheteiras, a matemática é cruel: menos espectadores, bilhetes mais caros, pipocas a preço de jantar, filmes disponíveis nas plataformas um mês depois. A experiência cinematográfica, que outrora prometia o inatingível, tornou-se aparentemente replicável.

Em casa, a imagem é 4K, o som é envolvente — e a distração é gratuita.

No fim de semana em que Springsteen: Deliver Me From Nowhere estreou, esperava-se que o público regressasse às salas. Não regressou. Nem o rock salva a liturgia perdida. E as estrelas, que esgotavam sessões, já não atraem multidões. Os filmes não fracassam sozinhos; é o próprio pacto entre o espectador e o cinema que se desfaz.

Se nas grandes cidades os cinemas encolhem, no interior o apagão é quase total.

Beja, Bragança e Portalegre já não têm exibição comercial regular e diária. Dependem das autarquias — heróis silenciosos que mantêm acesas as lâmpadas dos auditórios municipais.

Em Beja, a única sala comercial do distrito, a Melius Beja, fechou a 1 de agosto, após uma fiscalização da IGAC. Promete reabrir, mas o exibidor confessa-se desanimado.

Em Bragança, as salas privadas fecharam há mais de uma década. Hoje, apenas o Auditório Municipal Paulo Quintela insiste em projetar filmes, num “esforço enorme” da câmara. Nos concelhos vizinhos — Mogadouro, Torre de Moncorvo, Freixo de Espada à Cinta, Vimioso, Miranda do Douro, Vila Flor — são também os municípios que alimentam a projeção. Às vezes há casa cheia, dizem, mas é mais pela persistência do gesto do que pela força do mercado.

Portugal volta a dividir-se entre litoral iluminado e interior às escuras — como se o cinema, tal como o país, sofresse da mesma desigualdade antiga.

Oppenheimer
A película de “Oppenheimer” em projector de 70mm

Há, contudo, quem insista em sonhar. Alguns cinemas investem em som Dolby Atmos, projeção laser, conforto e nostalgia. Outros sonham com um regresso simbólico à película, como se o grão fosse uma forma de oração.

Mas o futuro da exibição — e talvez do cinema — não dependerá da resolução, nem do som, mas da emoção. Devolver ao ato de ver um filme o sentido de acontecimento. Fazer da ida ao cinema um gesto raro, necessário, quase sagrado.

Porque, no fim de tudo, há uma frase que continua a ser verdade, mesmo dita em voz baixa, mesmo escrita à luz das saídas de emergência:

Para ver cinema, vá ao cinema.

Antes que seja tarde — e o feixe de luz deixe de iluminar o ecrã.

Vale a pena recordar que, em fevereiro de 2024, noticiávamos as dificuldades enfrentadas por algumas salas de cinema.

Ricardo Lopes

Começou a caminhar nos alicerces de uma sala de cinema, cresceu entre cartazes de filmes e película. E o trabalho no meio audiovisual aconteceu naturalmente, estando presente desde a pré-produção até à exibição.

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