José Vilhena, o mais distinto humorista português do século XX
Descobre a arte e o legado de José Vilhena, um cartunista cuja criatividade e humor marcaram a ilustração e a sátira político-social em Portugal.
Entre os mais notáveis humoristas portugueses do século XX distingue-se José Alfredo de Vilhena Rodrigues (1927 – 2015.)
Não poderia deixar de ser recordado em matéria do legado do intenso trabalho criativo que revela a qualidade provocadora e satírica que acompanha já os trabalhos de outras figuras ímpares, as que se dedicaram à Ilustração devido ao seu gosto pelo Desenho e da qual se originaram os Cartoons, revelando uma mesma qualidade em matéria de habilidade para a Escrita, dos quais se evidenciaram artistas como Rafael Bordalo Pinheiro (1846 – 1905), José de Almada Negreiros (1893 – 1970) e Vasco de Castro (1935 – 2021), entre outros.
A habilidade e a capacidade expressiva que reforça o poder das caricaturas dos cartunistas portugueses projeta-se numa variedade extensa de obras que é difícil ignorar, sendo Vilhena uma referência, ainda que muitos lamentem que não se tenha dedicado extensamente às vinhetas de BD que são características de outros casos, ainda que a sua influência possa ser reconhecida por outros portugueses que se dedicaram a esta arte. O problema é que na época em que Vilhena se começou a dedicar aos seus cartoons, os leitores portugueses estavam pouco recetivos às BD’s, associando-as sobretudo a um público mais infantil.
Vilhena demarca-se nos anos 50 do século XX ao passar de publicista para ilustrador de anedotas — claramente para adultos! —, reforçando o seu sentido de humor através dos cartoons que o celebram através de edições próprias para livros de bolso, publicadas pela editora O Mundo Ri, como é o caso de Este Mundo e o Outro (1956) e o Manual de Etiqueta (1960) entre outros títulos notáveis. De algum modo sucessor do trabalho satírico de Rafael Bordalo Pinheiro, José Vilhena nunca resistiu a fazer crítica social.
Os seus livros ilustrados adquiriram um atrevimento que está na base do seu sucesso: Romperam com a perceção distorcida e errada sobre um país de habitantes submetidos a imperativos de ordem moral e em total conveniência com as regras impostas por um regime que procurava controlar todos os aspetos da vida das pessoas. A visão incutida e publicamente promovida sobre «os bons valores» e idealizações várias (de ordem religiosa, económica, política, laboral, familiar, entre outras) foram analisadas de forma ousada por Vilhena, já que não hesitou em contradizê-las e desmitificá-las, com uma boa dose de ironia.
A vã procura do uso da instituição formal do que deve ser levado a sério e o culto de um sentido de nobreza ou da honra questionável que determina a importância de ações de indivíduos “notáveis”, além das celebrações e cerimónias num país de tão pouco conteúdo em tanto aparato, deram rapidamente lugar à paródia em toda a obra literária de Vilhena, reconhecido como mordaz e «malicioso.»
Esta paródia torna-se necessária à questão da tão apreciada crítica social que originou um amplo número de risos em localidades onde os seus livros e outras impressões foram divulgadas, sobretudo em cidades de maior extensão e expressão cultural, como Porto, Coimbra e Lisboa. Vilhena não poderia fazê-lo sem a sua boa capacidade de análise e é desse modo que redigiu a sua auto-biografia, presente em vários dos seus livros, alguns dos quais agora reeditados pela E-Primatur:
Vilhena nasceu em 1927, teve sarampo e todas as outras doenças peculiares nas crianças a quem a providência divina não ligou grande importância. No liceu foi perseguido pelos professores que o chumbaram sempre que puderam. Na Escola de Belas Artes foi um incompreendido. Tragédias sobre tragédias vão-se acumulando como nuvens no céu da sua vida. Aos 20 anos teve uma pneumonia. Aos 21 uma loira. Aos 23 foi chamado a cumprir o serviço militar.
Aos 24 conhece uma daquelas mulheres que põem o juízo em água ao mais «sabido». Aos 25 é obrigado a trabalhar numa casa que traficava vinhos. Aí adquiriu uma inclinação muito acentuada para a bebida. Aos 26 vários dramas sentimentais (a carne entra também no sentimentalismo dele) tornam-no um descrente na humanidade, principalmente na parte feminina da humanidade. Aos 27 publica o seu primeiro livro (Este mundo e outro) e é apedrejado pela crítica de alguns jornais.
Aos 28 tem uma paixão dupla (fenómeno raríssimo) isto é: apaixona-se por duas mulheres simultaneamente. Aos 29 publica o seu 2º livro (Pascoal). Aos 30 conhece uma morena. Esta última tragédia assume proporções tão catastróficas que alguns amigos admitem ser o ponto final de uma vida inteiramente dedicada às artes e à contemplação da natureza (ou melhor – de certos espécimes da natureza).
Numa época em que criticar era tão perigoso como falar abertamente de temas tabu como o sexo, o vício e a pobreza, os textos cómicos de Vilhena eram dotados de jogos de palavras ou expressões dúbias que naturalmente se referiam a todos esses aspetos. E nem sempre foram totalmente dissimulados.
Podemos reconhecê-lo quando se dedica à História Universal da Pulhice Humana, com o seu primeiro volume Pré-História, publicado em 1960: Neste livro é difícil não reconhecer algumas comparações entre período histórico e o próprio regime através de textos que expõem as dificuldades existenciais do Ser Humano, ainda que as piadas sexuais sejam as mais salientadas, com a sujeição do próprio homem às exigências da mulher, já que a atribuição de papéis de género e a comédia originada pela força das circunstâncias não é estranha na sua época.
Amiúde, Vilhena ilustra os homens como indivíduos mais grosseiros e por vezes patéticos (óbvias caricaturas), enquanto as suas mulheres adquirem traços mais dignos, quase divinizados, sendo mais altas ou surgindo propositadamente em primeiro plano. A mulher, na vida de Vilhena, assume-se com uma distinção óbvia, tornando-se uma figura omnipresente em histórias e anedotas. Desenhou, ilustrou e pintou inúmeras mulheres, algumas das quais em posses sensuais, revelando a sua tendência para transgredir o que até então era permitido, incluindo a exposição de elementos de caráter erótico.
No que tocava igualmente a revelações inoportunas, comparações divertidas, menções pouco inocentes que expunham o pior das pessoas e eram dignas de fazer corar um elevado número de figuras públicas, reinterpretando tudo o que a elevada maioria sabia ser verdadeiro à luz da melhor comédia, José Vilhena foi um mestre. Tornou-se dedicado e imparável.
Sucederam-se publicações que ainda hoje são referenciadas por fãs e colecionadores, frequentemente ilustradas: A continuação da trilogia História Universal da Pulhice Humana através dos volumes O Egipto (1962) e Os Judeus (1965) além de O Elogio da Nobreza (1961), Branca de Neve e os 700 Anões (1963), Proibido Buzinar (1963), Dicionário Cómico (1964), Tenha Maneiras (1966), A Menina do Chapeuzinho Vermelho (1966), Como Apanhar um Marido (1968), Férias de Verão (1969), entre outros.
Apesar de tudo, o mestre da comédia ilustrada arriscou e infringiu, mesmo que procurasse contornar a censura das revistas publicando os seus livros. Não será surpreendente que tivesse sido detido por três vezes nos anos 60 do século XX, quando começou a chamar demasiado as atenções das autoridades, atentas aos seus textos incómodos, que por vezes é forçado a voltar a reescrever ou suprimir.
Mas, independentemente das adversidades, José Vilhena contou sempre com inúmeros apreciadores que validaram a forma isenta e autêntica com que retratou a sociedade que conhecia, permitindo estabelecer com elevada fidelidade a realidade incómoda que definia o quotidiano dos portugueses, independentemente da sua posição e da sua condição social. Fugir às regras e ousar também atraía os clientes típicos dos quiosques que punham em causa um sistema repressor que tudo procurava vigiar e ainda assim fracassava em conter os seus impulsos de compra para adquirir o que era proibido.
Os processos da PIDE movidos contra Vilhena, além da censura imposta, só o tornaram mais admirado. As suas publicações foram um êxito.
É necessário reafirmar que entre Vilhena e os seus leitores operou-se um fenómeno de expressão cultural muito interessante nas décadas finais do Estado Novo: Um fenómeno de cumplicidade entre os que reconheciam que era necessário colocar todo um sistema em causa, partilhando ideias de forma clandestina, visando contornar a lei, desafiar o medo e encarar de frente a verdade, por mais incómoda que fosse.
Além dos que se identificavam com outras ideologias políticas para fazer frente ao regime, havia sempre o papel dos que eram dotados de sentido de humor, os que queriam realmente fazer crítica de tudo e todos, procurando viver livremente e estar acima disso. As detenções e as ameaças silenciosas em relação a Vilhena na década de 60 não o travaram e continua a publicar os famosos livros de bolso, distinguindo-se obras como: A Grande Tourada (1970, que moveu um processo digno de nota e foi apreendida pelas autoridades), Julieta das Minhocas (1970), A Pílula (1971), Marmelada (1971), o início da trilogia O Filho da Mãe (1972), Os Mamíferos (1972) e Cinto da Castidade (1973.)
Vilhena não só divertia, como satirizava sem receio e expunha sem pudor aspetos intrínsecos de figuras e personagens que eram baseadas em personalidades reais ou figuras que facilmente qualquer um de nós poderia reconhecer. E isso tudo teve lugar antes da revolução do 25 de Abril de 1974, quando finalmente os cartoonistas deixaram de ser controlados e perseguidos.
Até então, Vilhena já havia escrito mais de 70 livros (contando com muito do seu material apreendido) e a implementação de um regime democrático permitiu que Vilhena exprimisse o seu sentido de humor com maior vigor, não poupando nada nem ninguém através das suas ilustrações e dos textos dotados do maior atrevimento até então concebido com a publicação da revista Gaiola Aberta, o que não impediu que não originasse um dado número de polémicas e inimizades que o conduziram a tribunal, tendo de lidar com vários processos motivados por queixas que quase o levaram à falência.
Estes ensaios atrevidos que tão bem caracterizam um humorista que tira o maior partido do que concebe a liberdade de expressão (após anos de condicionamento e asfixia), mas que ainda assim não o impede de lidar com os protestos de quem se vê afrontado, elevam o trabalho criativo de Vilhena ao patamar do maior reconhecimento pelos autores que ainda hoje sentem a necessidade de denunciar o que há de questionável na promoção da moral e dos bons costumes.
O que é giro e aparentemente sagrado e aceite continua a manter-se digno de ser satirizado. Os seus desenhos e caricaturas, adicionando-se a projetos atrevidos de foto-montagens, não pouparam figuras históricas e religiosas, personalidades políticas e membros do jet-set na era da democracia, pelo que seu impacto foi extenso.
Até ao final da sua vida (2015), José Vilhena não parou o seu trabalho como ilustrador, nem as suas publicações. Além da revista Gaiola Aberta, há que referir a importância de Jesus Cristo Superstar (1974), A Paródia (revista, 1980), O Fala Barato (jornal de 1987 que passa posteriormente a revista em 1988), O Cavaco (revista, 1994), O Moralista (revista, 1996), Os Reis de Portugal – suas Taras e Pulhices (1998), Antiga Profissão (2001), Etiqueta e Magia Negra (2001), A Virgindade de Odete (2005), e outras mais.
José Vilhena foi um autodidata que ousou, ganhou sucesso, tornou-se em muitos pontos bem-sucedido, e o seu exemplo marca. Mesmo numa época em que a expressão de liberdade faz parte do nosso modo de vida, serão os artistas de agora capaz de ousar tanto? É uma questão que se coloca, quando reconhecemos que a adversidade é menor e os recursos para criar, ilustrar e publicar são bem mais amplos.
As ferramentas que os autores dispõem na atualidade nas mãos de Vilhena tornar-se-iam um meio através do qual publicitaria com maior amplitude o seu trabalho, sem a necessidade de se gerar o mesmo tipo de polémicas. Afinal, fazer crítica social e desenhar caricaturas é mais do que consentido, ainda que hoje se discutam riscos e «limites» num mundo cada vez mais globalizado e que o trabalho criativo entre em choque com diversas culturas, incapazes de consentir, por demasiadas vezes, esta tão necessária transgressão, ainda que vise transformar-se num agente de mudança em muitas mentalidades.
Hoje em dia, muitos criadores dotados restringem-se e subestimam o seu papel, que não pode ser apenas o do mero entretenimento ou de obedecer a expectativas de mercado: É certo que as melhores publicações de literatura, de banda desenhada, de mera ilustração surgem através das marcas de independência e autenticidade. E as suas mensagens, mesmo que levem anos a ser entendidas e até verdadeiramente apreciadas, encontram sempre o seu verdadeiro público-alvo: Os que detêm inteligência, sensibilidade e sentido critico para verdadeiramente analisá-las, validá-las, promovê-las e divulgá-las.
O êxito de Vilhena num período histórico marcado por sérias restrições revela que a dedicação e exploração total de um dom, ainda que o seja para a sátira, pode sempre levar um autor mais longe. Quando muito, tal como Rafael Bordalo Pinheiro, pode fazer História. Aprendendo com os mestres, talvez Portugal venha a reconhecer outros mais, que se distinguem e marquem através dos cartoons e outros projetos de ilustração.


Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural