Incal: Uma Revelação Cósmica em Forma de Banda Desenhada
Ah, Incal. Eis uma daquelas obras que, como o cometa Halley, aparece de quando em vez na história da banda desenhada para nos lembrar do poder visionário da arte sequencial.
Moebius e Jodorowsky criam aqui uma sinfonia cósmica que é tão lisérgica quanto profética. E que me desculpem os leitores apressados: isto não é só uma BD — é uma viagem espiritual com tinta, papel e caos.
Moebius desenha como quem respira: leve, solto, espontâneo. Cada linha parece colocada sem esforço, mas carrega uma densidade simbólica que faria um ícone bizantino corar de inveja.
Não há aqui o gesto forçado, o traço musculado do herói americano. Há uma leveza quase zen — e, paradoxalmente, um peso filosófico em cada vinheta. Parece simples, mas o vazio que Moebius traça é um abismo — e o leitor, claro, mergulha.
Os mundos de Incal não são apenas ficção científica. São arquétipos urbanos e espirituais, poluídos, densos, mas com uma mística que remete a Gurdjieff e à arquitetura de Escher depois de uma garrafa de absinto.
As cidades são verticais como castelos de tarot, os desertos existenciais como metáforas visuais de perda. A tecnologia, ali, não salva nem condena — apenas revela.
E o texto? Jodorowsky escreve como quem está possuído por um xamã intergaláctico e um filósofo hermético ao mesmo tempo.
A sua trama é mais uma iniciação alquímica do que uma história tradicional. Há simbolismo em tudo: nos nomes, nos caminhos, nas quedas.
John Difool não é só um protagonista — é o Louco do tarot, é o leitor em queda, é o ego num mundo que já não reconhece o divino.
As personagens não são realistas — são arquétipos, sim, mas de um tipo esquecido, vindos talvez de um sonho de Jung em acid.
A Anima, o Androide, o Cão-Mutante — todos espelham facetas de uma psique em esfarelamento. Não é Marvel. Não é DC. É um espelho quebrado que reflecte o universo inteiro.
Ler Incal é como entrar num templo cujo chão desaparece a cada página. É preciso desprender-se da narrativa linear e mergulhar num código simbólico, uma estrutura de revelações.
O final não resolve: ilumina. E como todo bom mito, exige releitura, exige entrega. E, claro, exige que o leitor aceite que há perguntas que não têm resposta — só camadas.
Incal é uma obra que não se consome: digere-se lentamente. Moebius desenha como um deus cansado e sábio. Jodorowsky escreve como um profeta sem freios.
O resultado é um objecto místico, rebelde e visualmente inesquecível. Não é para todos. Mas quem entra — dificilmente sai o mesmo.
Pergunto-me várias vezes como é possível ainda nenhuma das nossas editoras ter reeditado este icónico clássico num belo formato integral e com o luxo que merece.
E se o Incal é uma obra-prima, nem consigo falar de A Casta dos Metabarões, onde a loucura de Jodorowsky se junta à mão de Deus de Juan Gimenez e faz uma das melhores obras de ficção científica de todos os tempos.
Esta última, nunca chegou sequer a ser publicada na íntegra, apesar de várias editoras já extintas terem tentado…
Ainda bem que posso ler estas obras noutras línguas, ou até mesmo no português do Brasil, mas quanto a mim, é uma falha imperdoável no universo português de banda desenhada, não ter estes títulos disponíveis para novos leitores se deliciarem e os antigos comemorarem.
Fica o desabafo…

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.
Assino por baixo, Carlos. Uma vergonha esta lacuna no mercado nacional, mas não surpreende uma vez que a maioria do editores locais parecem ignorar BD de ficção científica.
Excelente desabafo, há pouco tempo andei atrás das edições da Meribérica para poder ter na minha coleção mas se saísse não tinha problemas nenhuns em ter “repetido” mas num formato melhor. É uma aventura sem igual, é daquelas BDs que carimba o selo de “nona arte”. O tipo de história que aconselhamos a alguém que ainda ache que BD é algo infantil.
Amen!