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Cinema: Crítica – Oh, Canada

Após o seu empenho na trilogia ‘Man in a Room’ que, lhe envolveu por quase uma década, Paul Schrader volta a percorrer caminhos, já considerados preteridos, da sua extensa filmografia de realização. Pegando, novamente, numa obra literária de Russell Banks (Foregone) para adaptar ao grande ecrã, o cineasta vai buscar, também, ao seu baú filmográfico American Gigolo (1980), o seu protagonista e antigo colaborador, Richard Gere. Numa história que tem tanto de sentido de missão – devido à sua proximidade com o autor (falecido) do livro que, lhe pediu para dar vida à sua obra no cinema – como de pessoal, tendo o cineasta feito uma experiência fílmica de metalinguagem, com pontos que se relacionam à sua carreira e atual cosmovisão. 
 

 Oh, Canada
Richard Gere e Uma Thurman em “Oh, Canada”

Jacob Elordi em “Oh, Canada”

A narrativa de Oh, Canada (2024) coloca Gere, no papel de Leonard Fife, uma fictícia figura renomada do cinema canadiano que se encontra num estado de doença terminal. A pedido de antigos alunos seus, Malcolm (Michael Imperioli) e Diana (Victoria Hill), o ilustre astro aceita participar num documentário que irá servir para recontar os ínumeros feitos da sua carreira. Porém, não é preciso muito para se perceber que, não é exatamente por aí que Schrader nos quer levar através desta história. Leonard é escrito como uma típica personagem ‘schradiana’ – preso num um passado que não consegue esquecer, nem ultrapassar, procurando, introspectivamente, redenção por isso, bem como um novo caminho. 

Só que o cineasta americano dá as voltas ao guião, pegando agora no que referi no início, ao ir beber a outro projeto seu, Mishima: A Life In Four Chapters (1985), para encontrar uma estrutura narrativa que lhe permite explanar o seu protagonista numa ótica de reflexão do seu legado. Se Mishima queria preservar e imortalizar o que construiu, Leonard pretende demolir. Um para revelar a verdade ao mundo, em especial à sua mulher Emma (Uma Thurman), de uma vida e carreira repleta de incongruências, mentiras e omissões. Acompanhamos durante noventa minutos uma autocrítica, quase terapia, de uma personagem trágica que quer, nos últimos suspiros de vida, ser franco e não fugir mais. 

Richard Gere, longe da fama e presença que tinha na indústria na última vez que o vimos a interpretar o supérfluo e sedutor Kay nos anos 80s, tem escolhido os papéis a dedo, e em Oh, Canada (2024) encontramo-lo mais maduro, capaz da complexidade que Leonard necessita. O ás de espadas desta longa-metragem, revelando-se uma surpresa total. Leonard é também interpretado por Jacob Elordi na sua versão mais nova, o que permite este contraste permanente entre ambos, e na forma como o protagonista vai evoluindo e se moldando, quer protegendo o caminho de falsidades que foi construído ao longa da carreira, quer, eventualmente, pelo rompimento disso mesmo.

 Oh, Canada
Uma Thurman em “Oh, Canada”

Há momentos situados no passado, que envolvem Emma e não só, em que o realizador optou por colocar Gere mais velho lá, querendo transmitir, literalmente, a tentativa de Leonard em pedir perdão em vão, em algo que não é possível mudar. A atuação de Gere é ponderada, focando-se mais na linguagem não verbal, no olhar cuidado e abatido, para manifestar imensas sensações. Cortes súbitos puxam o espetador para o presente, no momento da gravação do documentário, em que Emma quer fugir ao confronto que lhe é inegável à frente dos seus olhos, algo que Thurman também conseguiu puxar muito bem em carga dramática da sua personagem. 

Neste labirinto de ex-relacionamentos fracassados e até incursões políticas pelo meio, a cinematografia é uma ferramenta bem utilizada, que é quase uma personificação e extensão da própria memória e mente de Leonard, entre ângulos fechados e distorções na imagem. Oh, Canada (2024) é um verdadeiro estudo de personagem clássico, mas subversivo à sua maneira, pelo guião optar por personagem que tenta destruir a ativamente própria narrativa construída, e eventual legado, enfrentando a verdade de forma brutal e irreversível. Contudo, ficaria incompleto sem a pitada de espiritualidade, que faz também parte do role de símbolos narrativos de Schrader, sendo essa camada relegada para a última parte do filme, onde se atinge um auge, de verdadeira libertação, e sobretudo, paz para Leonard.

 Oh, Canada
Jacob Elordi em “Oh, Canada”

Por fugir, ao que o realizador havia habituado os seus fãs, mais recentes da sua filmografia, poderá causar alguma estranheza os caminhos dramáticos estreitos que Schrader atravessa. Atingindo ele uma idade avançada, e um eventual fim de carreira (mesmo que de forma involuntária) próximo, este filme serve como um consolo artístico, e também, uma mensagem face àquilo que o próprio tem sido vocal nos últimos tempos, quanto a hipocrisia, na indústria de Hollywood. O que reforça o carácter pessoal de Oh, Canada (2024), que referi inicialmente, e o eleva ao estatuto de um dos mais importantes da sua filmografia. Além de ter aqui, a melhor prestação de Richard Gere de que há memória em tempos recentes. Uma verdadeira hidden gem do ano. 


 Oh, Canada

João Pedro

Alguém que vê de tudo um pouco, do que se faz no mundo da Sétima Arte, um generalista por natureza. Mas que dispensa um musical ou comédia

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