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Análise BD: “Preferência do Sistema”, de Ugo Bienvenu

“Uma distopia algorítmica com cheiro a arquivo”

O livro parte de uma premissa em linha com os medos contemporâneos: num futuro não muito distante, a inteligência artificial e os algoritmos decidem quais os conteúdos culturais que merecem ser preservados e quais devem ser eliminados. A ironia é evidente — um sistema de decisão automatizado a determinar o que é “valioso” numa arte profundamente humana como a literatura ou o cinema. Estamos perante uma distopia elegante, mais próxima de Fahrenheit 451 do que de Blade Runner, e menos explosiva que qualquer Black Mirror — ainda que esse ADN esteja presente.

Preferencia Do Sistema

O protagonista, Yves, é um arquivista-resistente. Armazena clandestinamente livros e filmes “não rentáveis” ou considerados “sem interesse”, numa clara metáfora daquilo que o mercado editorial e cinematográfico já faz há décadas: eliminar o que não vende. O sistema operativo que decide estas preferências é tão impessoal quanto plausível. O medo não vem de robôs assassinos, mas da eficiência silenciosa do algoritmo.

Com uma estética retro-futurista e uma narrativa contida, a arte de Bienvenüe oscila entre o funcionalismo e o charme gráfico. O traço é limpo, quase mecânico, com cores que remetem ao design dos anos 70 — verdes pálidos, laranjas sujos, cinzentos desbotados — uma paleta fria que sublinha a frieza do sistema que se pretende criticar. Há aqui ecos de Moebius nos espaços vazios, mas sem o misticismo ou a vastidão onírica; Bienvenüe é mais minimalista e contido.

A construção de página segue uma grelha rigorosa, quadrada, de uma regularidade que se casa bem com o tema: a opressão da normalização e da categorização. Mas o estilo, apesar da clareza, pode parecer por vezes algo clínico, quase distante.

É deliberado?

Provavelmente. Mas isso não impedirá alguns leitores de se sentirem pouco tocados emocionalmente.

Preferencia Do Sistema

Ugo Bienvenüe é um autor francês que transita entre várias linguagens: é ilustrador, realizador de animação e autor de BD. Isso sente-se no ritmo cinematográfico da obra — os enquadramentos fixos, a lentidão deliberada de certas cenas, o uso de repetições visuais como forma de mostrar o aprisionamento das personagens num quotidiano maquinal.

A formação em animação, particularmente na Gobelins (uma das melhores escolas de animação do mundo), nota-se na forma como o tempo é manipulado visualmente — mesmo numa narrativa aparentemente “parada”, há uma montagem silenciosa a acontecer. Cada vinheta parece um still de um filme animado que nunca arrancou.

Preferência do Sistema é uma obra que questiona o valor que damos à memória cultural e quem decide o que merece sobreviver. A crítica ao consumismo cultural não é subtil, mas também não é panfletária. Há ironia, mas também um certo desencanto.

A escolha de uma narrativa fria, quase asséptica, poderá afastar os leitores que procuram emoção mais imediata. Mas aqueles que se detêm nos detalhes, nos silêncios, nas repetições — esses encontrarão uma BD que ressoa muito depois de se fechar a contracapa.

Como conclusão, pode dizer-se que não é uma obra para se devorar de uma vez, mas antes para se arquivar na cabeça — como aqueles livros que o algoritmo decidiu apagar, mas que nós, teimosamente, insistimos em lembrar.

Vale muito a pena a experiência desta leitura e recomendo vivamente explorar outras obras deste autor, que já referi anteriormente noutras publicações, e que pertence à chamada “nouvelle vague” de autores franceses que trazem obras “fora da caixa”, como Bastien Vivès ou Le Boucher.

Carlos Maciel

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.

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