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Análise BD: A Conspiração Voronov e A Arte da Guerra

Todos os anos, no último trimestre, os leitores de BD franco-belga já sabem que vão ter mais um novo título das séries clássicas. Em 2023 não foi diferente, e no caso de Blake e Mortimer foi em dose dupla. Leiam aqui as análises aos livros A CONSPIRAÇÃO VORONOV e A ARTE DA GUERRA.

No final de 2023, a discussão sobre a continuidade das séries franco-belgas clássicas ganhou uma dimensão inesperada por causa da decisão sobre o novo livro de Gaston Lagaffe, cuja publicação foi decidida em tribunal. Continuar séries com outros desenhadores ou outros argumentistas não é novo. Veja-se o caso das séries Jean Valhardi, Tanguy e Laverdure ou mesmo Spirou, todas com várias mudanças de autores, mas sem qualquer polémica.

Só que agora começam a surgir outras questões. Se é verdade que Ted Benoit já reconheceu que sem Blake e Mortimer teria sido obrigado a vender a sua casa, não é menos verdade que André Juillard, ocupado com a mesma série, não pode continuar a sua muito estimada e pessoal série Caderno Azul. Também Jean-Yves Ferri (Asterix) foi agora substituído por Fabcaro, e vai acabar o seu De Gaulle em Londres, parado há mais de 10 anos. Oliver Schwartz suspendeu a série Atom Agency para desenhar Spirou.

Quando começa a surgir um certo cansaço com as séries clássicas, a pergunta que se coloca é saber quantas séries originais se terão perdido por causa desta preocupação com a faturação.

A série Blake e Mortimer é um bom exemplo desta problemática. Os novos títulos que começaram a ser publicados 19 anos depois da última obra original de Jacobs, e que são realizados por uma grande variedade de autores, atingem todo o espectro possível quando falamos da qualidade do desenho e do argumento e, apesar de não conseguirem uma aceitação unânime dos admiradores da série, continuam a bater recordes de vendas.

Em 1993, a Dargaud propôs a Van Hamme e Benoit a continuação da série. Ambos vão demorar três anos até publicarem O Caso Francis Blake. A responsabilidade é muito elevada e por isso Benoit pede ajuda a Floc’h, que começa a trabalhar com ele e que lhe sugere contratar mais um desenhador que se iria dedicar aos fundos das vinhetas. Porém a equipa não funciona e Floc’h deixa Benoit sozinho, quase no início do projeto, guardando durante 30 anos uma prancha de ensaio que viria mais tarde a adaptar para A Arte da Guerra.

O seguinte volume teria sido O Estranho Encontro. Mas Van Hamme/Benoit são perfecionistas, estão a demorar muito para fazer sair o volume e a Dargaud precisa de rentabilizar esta série.

Assim, a editora decide formar uma segunda equipa e convida Yves Sente e André Juillard para criar um outro volume. A primeira equipa a terminar veria a sua obra imediatamente publicada. Sente e Juillard trabalham rapidamente e em 26 de Junho de 1999 começa a ser pré-publicada A Conspiração Voronov na revista Le Figaro e posteriormente em Janeiro de 2000 é lançada em álbum (chegou a Portugal apenas em Setembro).

A Conspiração Voronov trata-se duma história muito no género dos originais de E.P. Jacobs, tanto a nível de argumento e desenvolvimento da história, como a nível gráfico. Este argumento, criado com a ajuda de Jean Van Hamme, parece ser inspirado no livro de Michel Crichton de 1969, A Ameaça de Andrómeda, e podia ter sido utilizado para um filme de James Bond.

Curiosamente, vinte anos depois, a pandemia da COVID-19 mostrou-nos uma realidade que nos faz lembrar esta ficção. O desenhador escolhido inicialmente era Dirk Stallaert, conhecido em Portugal pelos álbuns de Nino editados pela ASA. Porém Stallaert recusou, pois considerou que teria de fazer um trabalho que limitava muito a criação própria.

Todo o trabalho estava condicionado e limitado às características do criador original, sendo que para além de ter de criar um livro de qualidade, este também tinha de parecer um livro de Jacobs. Juillard seria pois o escolhido, no meio de muitos outros autores que apresentaram ensaios à editora Dargaud, como foi o caso do já referido Floc’h, e também de André Taymans, Johan de Moor, Emile Bravo, Philippe Wurm, Jerome Presti e Ray Saint-Yves.

Na tradição de Jacobs, este é um livro com vinhetas com muito texto, com desenhos cheios de pormenores e com os fundos muito trabalhados. Numa nítida evolução dos tempos, surgem várias mulheres com intervenção na evolução da história, algo que não acontecia nos volumes do autor original.

Apesar de ser um livro com imenso texto, em que as imagens servem para criar o ambiente, é um livro que consegue manter um constante interesse até ao fim, ficando o leitor sem saber o que acontece ao Dr. Voronov, o que deixa em aberto a hipótese de voltar a surgir no futuro. Esta aventura foi inicialmente prevista para dois volumes, depois adaptada para 66 páginas e por fim para 60 páginas.

Está no grupo das melhores continuações da série. No caso do livro em análise, publicado pela ASA, trata-se da terceira edição em Portugal. Originalmente foi publicado pela Meribérica em Setembro de 2000 e depois pela ASA/Público em Janeiro de 2009, numa edição de luxo com lombada em tecido.

As capas das três edições são todas diferentes, apesar de utilizarem a mesma gravura base, sendo que a da Meribérica era igual à da edição original francesa. Também a responsável pela tradução é a mesma nas três edições, mas a tradução da ASA é diferente da Meribérica. Enquanto que na edição da Meribérica o papel era brilhante, o que realçava as cores, nas edições da ASA o papel é baço, o que homogeneiza muito as cores.

E se este é um livro para completar coleções, o outro livro em análise, A Arte da Guerra, é uma obra totalmente inédita. É o segundo álbum da série paralela Um outro olhar sobre Blake e Mortimer, com argumento de Fromental e Bocquet e desenhos de Floc’h.

Tal como já referimos, Floc’h foi um dos primeiros desenhadores a ser convidado para continuar o legado de Jacobs e era muitas vezes referido como aquele que seria um dos seus melhores seguidores e com uma forte ligação ao estilo Linha Clara. Talvez por isso e passados 30 anos, Floc’h, como referiu numa entrevista, depois de reler durante o confinamento todos os livros da série, decidiu recuperar a antiga prancha de ensaio e dar um passo, não atrás nem à frente, mas para ao lado, e decidiu fazer algo completamente diferente.

O objetivo era o de criar um livro que fizesse o leitor virar rapidamente as páginas, ou seja, poucos textos e desenhos de leitura fácil e de rápida identificação. Basicamente, a Linha Clara reduzida à sua essência. Less is more…

O argumento da história podia facilmente ser usado num álbum da série normal. Trata-se de uma história de espionagem, sem qualquer ligação á ficção científica, como acontece com O Caso do Colar de Jacobs. Floc’h não quis usar no século XXI a ficção científica dos anos 50 do século anterior, e inclusive usou um tema muito atual: a tentativa de evitar a guerra através da diplomacia. Mas tudo o resto neste livro é completamente diferente.

As vinhetas muito grandes, com pouco texto, sem as habituais expressões inglesas, os fundos reduzidos ao mínimo, uma mulher como um dos intervenientes principais, Blake a ter quase tanta importância na história como Mortimer e, por fim, Mortimer de meias no quarto do hotel e um agente do FBI a usar palavras obscenas – tudo são coisas que nunca veríamos numa obra de E.P. Jacobs. Floc’h quer desenhos de leitura fácil e nada pode desviar a atenção, sejam textos ou pormenores.

Por exemplo, na primeira página, o avião que surge em duas vinhetas não tem qualquer identificação da companhia a que pertence ou de matrícula. Mas isso não interfere com a história.

Por tudo isto, esta é uma obra original e de descoberta em cada página que se vira. Curiosamente não faz lembrar Jacobs, mas faz muito lembrar as primeiras obras de Tintin na sua versão original. Floc’h afirmou que quis fazer um Floc’h e não imitar Jacobs, mas a verdade é que é graças aos personagens dele que Floc’h tem o seu campeão de vendas…!

São várias as piscadelas de olho que o autor faz, nomeadamente a Hergé, Warhol, Hopper e até usa a figura de Daniell Hammett, criador de Sam Spade e do Agente Secreto X-9, para o agente do FBI.

Um livro que é uma curiosidade mas ao mesmo tempo uma lufada de ar fresco, numa série que caiu num marasmo difícil de ultrapassar. De leitura quase obrigatória que faz pensar se realmente merece a pena esticar estas séries clássicas até ao infinito.

Livros em capa dura com boa encadernação, com páginas em papel baço de boa qualidade e com boa impressão. Preço normal para o tipo de livro.

Tempo de leitura:

  • A Conspiração Voronov – aproximadamente 1:30 horas
  • A Arte da Guerra – aproximadamente 40 minutos

Em resumo, temos aqui dois livros em que o único fator comum é pertencerem à série Blake e Mortimer. Um é considerado como um digno representante da série original, com todos os defeitos e virtudes dos trabalhos de Jacobs, apesar de ser apenas uma imitação. O outro, é a mais completa quebra com todos os códigos dos trabalhos desse mesmo autor, com os leitores a dividirem-se pelos extremos: ou gosta-se ou odeia-se. Duas obras que merecem estar na estante dos bedéfilos, quanto mais não seja como prova de criações diferentes a partir duma mesma base. Mas a questão coloca-se: será que estes heróis são eternos?

Novo ou antigo, ousado ou clássico, Blake e Mortimer vai continuar a vender como pãezinhos quentes. Por isso preparem a carteira para no final do ano comprar o novo Blake e Mortimer de Sente e Juillard, centrado na Cornualha e com referências ao Rei Artur, a independentistas e a vagas de imigração.

Blake & Mortimer: A Arte da Guerra

Yves Sente, André Juillard
Editora: ASA

Livro em capa dura com 64 páginas a cores nas dimensões de 24 x 31 cm
PVP: 15,90 €
Compra aqui

Blake & Mortimer: A Arte da Guerra

Jean-Claude Floc’h, Jean-Luc Fromental, José-Louis Bocquet
Editora: ASA

Livro em capa dura com 128 páginas a cores nas dimensões de 24 x 31 cm
PVP: 20,90 €

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