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Análise BD: A Bela Casa do Lago

É curioso como, de quando em vez, surge uma obra no panorama da banda desenhada que nos recorda que o terror mais eficaz não se faz de monstros, mas de memórias.

A Bela Casa do Lago, com argumento de James Tynion IV e ilustração de Álvaro Martínez Bueno, é uma dessas obras que nos toma pelo pulso e nos leva, em silêncio, à beira do abismo – onde a beleza e o horror se confundem como reflexos na água de um lago imóvel.

À primeira vista, a premissa parece anódina: um grupo de amigos, todos trintões de diversas proveniências, é convidado por Walter, uma figura enigmática que pertence ao círculo há anos, para passar férias numa casa luxuosa e isolada junto a um lago idílico.

O que começa como reencontro nostálgico entre amigos rapidamente se converte num jogo de espelhos psicológicos e metafísicos.

A Bela Casa do Lago 1

Tynion IV revela-se um argumentista que compreende o tempo. Sabe quando calar a narrativa para deixar a arte respirar.

Os diálogos – sóbrios, mas pontuados por uma tensão latente – funcionam como costura entre cenas que, por vezes, nos lançam para territórios de Black Mirror ou de uma ficção científica quase teológica.

Há ecos de Bradbury e Shirley Jackson, mas também de Bergman, especialmente no modo como a amizade e o amor são dissecados à lupa até revelarem a sua essência frágil e, por vezes, perversa.

Álvaro Martínez Bueno oferece-nos uma arte de uma elegância dolorosa. As composições são cirurgicamente pensadas: ângulos claustrofóbicos, rostos desenhados com um realismo perturbador, e uma paleta cromática que parece flutuar entre o conforto do calor humano e a frieza do incognoscível.

Há momentos em que o desenho se aproxima do onírico, sobretudo quando a casa começa a revelar o seu segredo — e é nesse ponto que a obra ganha outra densidade, mergulhando em pleno no território do simbólico.

A Bela Casa do Lago

A Devir merece aqui uma nota de louvor pela edição cuidada, que preserva a nitidez dos traços e o ritmo narrativo, algo nem sempre conseguido em traduções de obras americanas. A tradução está à altura, mantendo a ambiguidade e a cadência natural do original. Respeito a decisão de ter dividido a obra, embora a leitura ganhe muito, se lida na totalidade, pois o ímpeto de saber o que se passa nas páginas seguintes é enorme.

No fundo, A Bela Casa do Lago é uma fábula sombria sobre as distâncias entre as pessoas — mesmo entre aquelas que se amam. É um espelho do nosso tempo, onde a hiperconectividade digital convive com a solidão emocional, e onde o apocalipse, mais do que um evento externo, é uma implosão silenciosa dentro de cada um.

Sendo que já li toda a obra no original em inglês, posso dizer que o verdadeiro horror não está no que se esconde na casa, mas no que os amigos trazem dentro de si.

A Bela Casa do Lago

Leitura muito recomendável para quem gostar deste género, e fico ansioso por ler também “The Nice House by the Sea”, que espero que a Devir também aposte, pois tem a mesma equipa criativa. Tynion IV é um argumentista genial, Bueno desenha incrivelmente bem e provavelmente a Jordie Bellaire é neste momento a minha colorista favorita.

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Carlos Maciel

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.

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