“Videolização”: Cinema nos dedos
Continua a série de crónicas sobre a banalização do cinema na era do excesso: “A Videolização”. Trata-se de uma abordagem crítica sobre a evolução cinematográfica — onde o cinema deixou de ser o centro da experiência e passou a ser apenas mais um produto audiovisual.
O Cinema Que Se Perde no Comando
Há tempos, ir ao cinema era um pequeno ritual. Víamos o trailer numa sala escura, semanas antes da estreia. Observávamos os posters alinhados no bar do cinema, o jornal anunciava a estreia, criávamos expectativas, combinávamos com amigos, esperávamos pela sessão como se se tratasse de um evento — porque era. Havia a antecipação, o encontro, o mergulho num mundo alheio com som envolvente e imagem a ocupar todo o campo de visão. E depois, sim, havia o filme.
Hoje, pega-se no comando da televisão. Clica-se. E eis o filme. Qualquer filme, a qualquer hora. É cinema? No conceito, sim. Em tudo o resto, não. O que temos é a banalização do cinema, servida em doses de conveniência e algoritmos.
Vivemos na era da abundância forçada. As plataformas de streaming precisam de centenas de horas de conteúdos novos todos os meses. Os filmes que existem não chegam. A solução? Produzir mais. Rápido. Em quantidade. Com nomes sonantes no cartaz e cineastas mais ou menos consagrados, porque é preciso chamar a atenção na montra digital. O resultado? Filmes desinspirados, genéricos, esquecíveis. Produtos com estrutura de filme, som de filme, elenco de filme — mas sem alma. E é precisamente esses, os rejeitados pelos grandes estúdios, que ganham estreia garantida em streaming. Como se o descarte de Hollywood tivesse sido promovido a “conteúdo original”.
E o público? Passa-se mais tempo a navegar nos catálogos do que a ver os filmes. Numa busca desesperada por um título que desperte interesse, por algo que se destaque na massa morna do que está “disponível já”. O gesto de procurar substituiu o prazer de esperar. A quantidade matou o desejo.
Mas há mais. O filme em casa não é apenas um filme menor — é uma experiência inferior. A sessão pode ser interrompida pela campainha, pelo bebé a chorar, pelo micro-ondas a anunciar pipocas. Vê-se um pouco hoje, mais um pouco amanhã. O volume está baixo para não acordar as crianças, o ecrã é pequeno demais para os detalhes que a câmara quis mostrar, o som não respeita os canais, e os sustos deixam de ter efeito porque os sons antecipatórios nem se ouvem, para evitar que o vizinho bata na parede. Não há imersão, não há foco, não há magia.
É a videolização do cinema, agora no sofá. Uma experiência partida, fragmentada, adaptada à lógica da distração contínua. Uma sessão feita para encaixar na vida — e não para suspender a vida enquanto se assiste a um espectáculo cinematográfico. O cinema está acessível, sim. Mas está distante da espectacularidade que lhe deu origem. Já não é um evento. É um conteúdo. Mais um. E como tudo o que se banaliza, perde força, perde presença, perde respeito.
As plataformas trazem filmes até nós, mas tiram-nos o chão onde o cinema crescia: a partilha colectiva, o ecrã monumental, o som que vibra no corpo, o tempo reservado só para aquilo. Perder isso é perder o próprio cinema. Não o conceito, mas a experiência. E sem experiência, o que sobra? Um ficheiro, uma pausa, um “voltar mais tarde”.
É cinema? O cinema, esse, continua a existir. No espírito, não. É videolização: uma prática de consumo que tira o cinema da sua condição de espectáculo e o transforma em conteúdo, em consumo leve, em distração passiva.
Capítulos disponíveis:
I. Do Ecrã à Sala de Estar: A Génese da “Videolização”
II. Mostras, Sessões e Festivais: Cinema ou Projeção de Boa Vontade?
Próximos capítulos:
IV. A Sala Resiste: O Cinema Como Último Reduto
V. Do VHS à IA: O Futuro da Videolização
Começou a caminhar nos alicerces de uma sala de cinema, cresceu entre cartazes de filmes e película. E o trabalho no meio audiovisual aconteceu naturalmente, estando presente desde a pré-produção até à exibição.