Cinema: Crítica – Mickey 17
Mickey 17 , o novo filme realizado por Bong Joon-ho e protagonizado por Robert Pattinson, já está em exibição nos cinemas. O Central Comics revela a análise ao filme.
“Pesada é a cabeça que usa a coroa” talvez seja a melhor frase que descreve a árdua tarefa de Bong Joon-ho em fazer um novo projeto após um dos melhores filmes da última década, Parasite (2019). Mais uma vez, o realizador regressa ao género da ficção científica para explorar a sua assinatura autoral de crítica social. No entanto, em vez de uma adaptação direta, este filme inspira-se apenas ligeiramente no livro em que se baseia, funcionando mais como uma reinterpretação do que uma adaptação fiel.
Ciente disto, e sendo grande apreciador do realizador sul-coreano, fui com expectativas moderadas, isto para não dizer que não fazia ideia de absolutamente nada sobre a longa-metragem tirando o seu cabeça de cartaz. Embora tenha gostado bastante do que vi (a minha classificação final deixará isso claro), não pude evitar em sentir alguma hesitação em relação a certas escolhas criativas. A primeira metade do filme apresenta um conceito fascinante, típico de ficção científica, forte o suficiente para sustentar toda a narrativa. No entanto, a segunda metade desvia-se significativamente desta premissa, mergulhando quase inteiramente na sátira política e social, ao ponto de ofuscar Robert Pattinson, o qual deveria ser o farol de destaque do filme.
Ao contrário de Snowpiercer (2013), onde as personagens, ação, construção do mundo e comentário social se fundem de forma orgânica, o argumento de Mickey 17 tem dificuldades em equilibrar em simultâneo, as suas múltiplas camadas. Por um lado, seguimos a jornada de Mickey, repleta de humor negro e sarcasmo exagerado, enquanto aceita, ingenuamente, ser explorado e descartado enquanto trabalhador sub-humano numa colónia terráquea na busca pela prosperidade da espécie. Isto sucede-se fruto do seu desespero em liquidar uma dívida para com um mafioso, embarcando também o seu amigo de infância Timo (Steven Yeun). Havendo, ainda, um romance com Nasha (Naomi Ackie), agente de segurança a bordo da estação espacial.

Por outro lado, há o foco numa narrativa mais ampla que aborda uma hierarquia de poder envolvida num populismo desmedido que dá mote a este projeto de colonização “pacífico”, levantando-se questões de ética sobre a sobrevivência da humanidade além fronteira. O problema é que o filme parece mais interessado neste segundo aspeto, especialmente após um volta-face no segundo ato, deixando a condição humana e a exploração da identidade de Mickey no fundo da ação principal que, a meu ver, deveria ter sido o core da história que estava a ser contada, não fosse o nome do protagonista ser compartilhado com o do filme.
E abordando isto, torna-se impossível ignorar o elefante na sala: a personagem de Mark Ruffalo, um dos grandes destaques no que diz respeito à atuação (como também na sua carreira), é uma caricatura inconfundível do presidente Trump. O pano de fundo social e político do filme reflete descaradamente as eleições mais recentes dos EUA, e Bong Joon-ho enfatiza este paralelismo de forma tão explícita que se torna impossível dissociar os dois.
É fácil perceber porque a Warner Bros adiou o lançamento do filme (pois há uma cena em particular que todos os espectadores irão com certeza pensar, em uníssono, na mesma coisa). O cineasta sempre foi vocal nas suas posições políticas ao longo da sua filmografia mais recente: nas críticas à desigualdade e assimetria social e ao sistema económico em que vivemos, mas ao fazer ligações tão diretas a eventos atuais, quebrou, substancialmente, a imersão do filme para mim. Não consegui deixar de traçar paralelos com acontecimentos reais enquanto assistia.
Com efeito, e como referi, a segunda metade da obra é penalizada com esta decisão tão explícita. Existindo cenas desconcertantes entre a seriedade das questões levantadas, com o humor negro nelas presentes. Parece-me que Joon-ho aproveitou o que queria da obra literária que se inspira como muleta para a crítica social, em primeiro lugar, que queria explanar, tornado-se a primeira, no panorama geral, descartável. O elenco de suporte consegue puxar a história de novo ao eixo correto, e no final da experiência, tudo acaba por fazer algum sentido devido a esse mérito.
Por outras palavras, a luta de um clone para se afirmar como o original (um dos pontos principais que desencadeiam o conflito da ação) acabou por ser tratado como um problema secundário. Este tema, um lugar-comum em narrativas sobre clonagem, parecia inicialmente ser o motor do filme, mas foi rapidamente suplantado pela sua mensagem política demasiado direta. O argumento está tão focado em fazer valer o seu ponto que acaba por se perder.
Voltando às interpretações, também não há como fugir a Pattinson, que aqui volta a provar porque é um dos atores mais versáteis e prolíferos da sua geração, estando mais do que redimido face àquele infame papel pelo qual ficou conhecido. A sua capacidade de interpretar duas versões distintas de Mickey 17 e 18, cada uma com personalidades e maneirismos próprios, é um testemunho desse mesmo talento. Chegando perto do melhor que já se fez neste quesito como o caso de Dead Ringers (1988) de Cronenberg.
A nível de fotografia e montagem diria que joga pelo seguro, não havendo particular ênfase ou inventividade nestes departamentos, acreditando eu, devido ao facto de se passar a ação num ambiente enclausurado, com a rara exceção dos segmentos em que Mickey 17 deambula no exterior. Mais se poderia dizer acerca de algumas personagens ou de determinados momentos ou até da colocação de certas piadas, mas creio, que tal como eu, a melhor experiência seja indo sabendo o mínimo possível. Mickey 17 pode não ter o mesmo impacto que os filmes anteriores de Bong Joon-ho ou em explorar plenamente o seu potencial sci-fi à Philip K. Dick, mas continua a ser uma experiência envolvente e provocadora.

Até certo ponto, com as devidas medidas, acaba por ser uma amalgama narrativa daquilo que já fez no género, em Okja (2017) e Snowpiecer (2013), sendo a mistura de ambos este cocktail uma que não eleva à sua soma das suas partes. Enquanto experiência de sala de cinema mantém o espectador preso enquanto tenta (com esforço) equilibrar afiado humor com assuntos densos, abordando até racismo, ética da clonagem, exploração laboral e populismo político. Pode não ser totalmente satisfatório enquanto produto do cinema de autor, em que o cineasta se projetou internacionalmente em 2019, mas é certamente um filme que vale a pena ser visto e, sobretudo, de se discutir.
8/10
Alguém que vê de tudo um pouco, do que se faz no mundo da Sétima Arte, um generalista por natureza. Mas que dispensa um musical ou comédia