Análise BD: Nas Suas Mãos – A incrível vida de Suzanne Noël
Descobre “Nas Suas Mãos – A incrível vida de Suzanne Noël“, a inspiradora história de Suzanne Noël! Uma análise profunda à obra da chancela Iguana.
Há muito que as histórias de Banda Desenhada preenchem o currículo de criativos talentosos que usam a sua habilidade para ilustrar combinada com o melhor argumento narrativo possível para nos contar histórias, sendo na sua maioria de carácter ficcional, usadas para nos relevar as incríveis aventuras e façanhas de heróis que cremos serem capazes de tudo, incluindo salvar o Mundo, senão todo o Universo, múltiplas vezes.
Mas claro está que a Banda Desenhada não existe apenas para promover o que muitos consideram ser mera fantasia.
A sua dimensão cultural é de tal ordem que será inegável validar a ilustração de temas de teor histórico e biográfico, como é o caso do álbum de capa dura de 200 páginas a cores publicada pela Iguana que aborda o heroísmo real da vida de Suzanne Noël através do título Nas Suas Mãos (À Mains Nues), reputada como brilhante estudante de Medicina e pioneira da cirurgia estética e reconstrutiva, reconhecendo-a como valiosa do ponto de vista da necessária emancipação das mulheres numa sociedade que as reprimia e invalidava que assumissem papéis mais interventivos e utilitários a nível profissional.
Nas Suas Mãos, a Incrível Vida de Suzanne Noël conta com a estreia da escritora e jornalista franco-marroquina Leïla Slimani (n. 1981) no universo da BD, vencedora do Prémio Goncourt pelo seu romance Chanson Douce (2016) que achou necessário homenagear uma mulher da estirpe de outras figuras notáveis como Nicole Girard-Mangin (1878 – 1919) a primeira mulher médica presente no Exército Francês e Madeleine Pelletier (1874 – 1939) a primeira médica a obter o diploma da área de Psiquiatria em França.
Suzanne Noël (1878 – 1954), por sua vez, destacou-se por desenvolver técnicas de cirurgia altamente inovadoras em combatentes de guerra desfigurados durante a Primeira Guerra Mundial, devolvendo-lhes a sua dignidade. Mas isso será pouco para descrever dentro da sua vida ativa, que justifica em muito o lançamento de um álbum que lhe é dedicado.
Se, de algum modo, esta é essencialmente uma obra de ficção, já que a escritora tomou algumas liberdades ao reimaginar eventos concretos da vida de Suzanne Noël, incluindo a sua relação com outras personalidades da época, é certo que muito do que é exposto é baseado em factos reais.
Essa visão livre de Leïla Slimani dota a história de outra fluidez e um certo dinamismo que é explorado pelo desenho de traços expressivos e leves de Clément Oubrerie (n. 1966) reconhecido pelo seu trabalho em Aya de Yopougon (em estreita colaboração com Marguerite Abouet) e Dalí (neste caso em colaboração com Julie Birmant).
Por isso já nos habitua à ideia de um rigor mais descomprometido e livre, próprio de um desenho rápido, orientado para uma narração clara e simples, mas ao qual não escapa a necessidade de inclusão de imensos detalhes, procurando a fidelidade ante a representação de muitos cenários e elementos de outras época que abrangem períodos históricos que vão do final do século XIX em França, passando necessariamente pelos campos de combate da Primeira Guerra Mundial, os ambientes hospitalares e universitários da primeira metade do século XX, entre muitos outros, fazendo ainda eco das viagens de Suzanne.
Nada parece surgir ao acaso na vida da protagonista: Após visualizarmos um acontecimento marcante e trágico durante a sua infância em Paris, que foi o de um acidente grave entre um veículo sem travões e um carro puxado por um cavalo que resultou na perda de várias vidas, somos levados a crer que a jovem Suzanne estaria predestinada a explorar as artes visuais, atenta às aulas de pintura próprias do mundo académico, mas sensível à influência dos Impressionistas que, a seu ver, pareciam reconhecer a alma nas pessoas e noutros elementos que representavam.
Essa faceta de apreço pelas artes, pelo reconhecimento e validação da beleza (na vida) e da harmonização da forma e dos corpos, revisitando os sentimentos interiores em relação ao mundo que observava – e que muito mudou ao longo da sua vida – será marcante, ainda que inicialmente não se antevisse a sua mudança de carreira.
De alguma forma insatisfeita com a vida que levava, após casar Suzanne optou por estudar Medicina quando esse curso era apenas orientado para homens. Trata-se de uma escolha invulgar e talvez desconcertante para muita gente na época em que viveu, mas a protagonista da história assumiu uma postura própria, com determinação, de alguém que almeja ser dona de um melhor destino do que mera esposa e mãe.
Através dos seus estudos, Suzanne olhou com renovado interesse para os corpos físicos e as formas, sentindo-se uma analista que observa todos os detalhes e mais alguns, algo que já havia antecipado através do seu interesse pelo desenho e a pintura. Há uma sensibilidade em si de ordem estética, que orienta o seu percurso, mas desta vez é bem mais interventiva. E, da mesma forma que se dedica a uma área exigente e que essa decisão afeta em muito o seu casamento, culminando numa separação, faz descobertas incessantes e notórias, deixando-se guiar pelas promessas da cirurgia no que toca a reconstituir rostos de pessoas.
Suzanne destacou-se a vários níveis, sentindo que uma mulher muito poderia fazer para melhorar a qualidade de vida das pessoas, contrariando um papel passivo atribuído à maioria. Mais do que ousadia é justo reafirmar que foi uma pessoa disposta a não cruzar os braços ante a adversidade, mesmo quando enfrenta momentos de vida particularmente difíceis.
A perda trágica da sua filha para a Gripe Espanhola durante os anos 20 do século XX, que conduzirá ao suicídio do seu companheiro, leva a que se foque ainda mais nas suas atividades, centradas não apenas na Cirurgia Estética mas no seu apoio à causa dos Direitos das Mulheres através do Clube Soroptimista, que envolvia, naturalmente, o seu Direito de Voto e à intervenção na Política.
O papel social da Cirurgia Estética, que não envolve apenas o trabalho com rostos de combatentes de guerra desfigurados, bem mais abrangente, envolve-se de certa forma nesta sua tendência interventiva em prol da dignidade que também é restituída a muitas mulheres em tempos onde o trabalho de Suzanne é encarado com suspeita por muitos que o consideram algo superficial e frívolo, próprio da «vaidade» feminina.
Esse percurso, percorrido com uma dedicação imparável, fez com que Suzanne Noël acabasse por ser reconhecida noutros cantos do planeta por muitas mais mulheres (e não só) e percorra outros países em busca de conhecimentos e contactos que permitam aperfeiçoar e validar a sua visão do potencial da cirurgia estética mesmo quando é abolida em França no ano de 1931.
Suzanne Noël, que viajou por muitos outros países europeus, percorreu ainda outros pontos que incluíram o continente asiático e americano, atenta à rápida ascensão de regimes repressores que ameaçavam muito do que havia sido conquistado até então em matéria de direitos. No final dos anos 30, que foram muito duros para uma personalidade bastante activa, o receio de perda completa de visão só foi afastado após uma visão às cataratas.
Mas acaba por se deparar com uma nova realidade que se iniciara com a eclosão da Segunda Guerra Mundial e a posterior ocupação de Paris pelo exército alemão. Todavia, Suzanne acabou por viver ainda mais tempo e assistir ao final do conflito, a novas mudanças e outras formas de pensar, nunca deixando de ter uma voz interventiva para todos os que almejavam o progresso em tempos de paz num mundo que ainda lidava com as feridas abertas geradas por horrores que colocavam em causa o papel de uma civilização avançada rendida aos mais extensos campos da barbárie. Suzanne Noël faleceu em 1954, certamente com esses pensamentos em mente.
Este álbum de BD, publicado pela Iguana, foi traduzido para Português por Tânia Ganho e revela-se imprescindível para reconhecimento da História que envolve o universo dos movimentos sociais e políticos que continuam a servir de fonte de inspiração para o Feminismo.
A envolvência de Suzanne Noël com o movimento Soroptimista recorda o contínuo e necessário debate em torno das profissões das mulheres e como muitas barreiras de carácter cultural e ideológico têm de ser ultrapassadas em inúmeros países espalhados pelo mundo, onde se negam demasiados direitos a uma extensa percentagem das populações existentes devido a questões de género.
Além do trabalho de Tânia Ganho, o álbum em português conta com a coordenação editorial de Eva Arim, a colaboração de Sérgio Pires no que toca à paginação, a envolvência da Wonder Studio através de Ana Teixeira no trabalho da adaptação da capa e uma revisão cuidada por parte da PRHGE: Penguin Random House Grupo Editorial Portugal, legando-nos um trabalho profissional digno de fazer a maior justiça à obra de Leïla Slimani e Clément Oubrerie.
Compra com desconto e portes grátis
Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural