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Análise BD: Dormindo Entre Cadáveres

Publicado em Portugal pela Livros Zigurate, Dormindo entre Cadáveres é um romance gráfico de Luís Moreira Gonçalves, com ilustrações de Felipe Parucci, que nos transporta para o coração da Amazónia durante a pandemia de COVID-19.

Esta obra apresenta o testemunho real do médico português Luís Moreira Gonçalves, aliado à linguagem visual intensa do ilustrador brasileiro Felipe Parucci (Apocalipse, por favor; Já Era).

Em Dormindo entre Cadáveres, Luís Moreira Gonçalves relata como passou de professor em São Paulo para a linha da frente no combate à COVID-19 como médico na Rondônia, Amazónia.

Começando pelo título, convém dizer que este não é uma metáfora, mas sim a realidade devastadora que ele viveu num hospital de campanha, onde a esperança de sobrevivência dos pacientes era inferior a 30%. Entre a falta de oxigénio, a escassez de recursos, colapsos hospitalares e a morte diária de muitos doentes, o autor mostra a sua luta constante na tentativa de salvar vidas em condições extremas. E, sim, ele chegou mesmo a dormir entre cadáveres.

Dormindo Entre Cadáveres

O livro está construído com um ritmo perfeito. Não é demasiado rápido nem excessivamente técnico, mas também não deixa o leitor relaxar por um minuto. Não querendo retirar mérito à capacidade de Luís M. Gonçalves, a experiência de Parucci terá tido grande influência no resultado final da obra, permitindo que o argumento tivesse tempo para respirar, como se vê pelas mais de 300 páginas que tem, assim como nas várias sequências de vinhetas sem texto.

Através das suas páginas, senti a impotência, o medo, a exaustão e o desespero que o médico português experimentou, mas também a compaixão, a solidariedade e a esperança que emergiram mesmo nos momentos mais sombrios. Não é comum, mas numa cena em que uma paciente tem alta consegui de facto emocionar-me — algo raro ao ler banda desenhada.

O artista Felipe Parucci confere à obra um traço intenso e perturbador, mas leve o suficiente para que o livro não se torne excessivamente pesado. O uso do preto e branco e do traço gatafunhado, onde ainda se percebem os lápis anteriores ao passar da tinta, reforça o sentimento de caos e desespero. A ilustração, longe de ser realista, transporta-nos para um mundo inquietante e desesperante, sem causar um choque emocional demasiado forte.

Há uma sequência muda em que os médicos tentam, sem sucesso, salvar um paciente. Nessa passagem, o traço torna-se ainda mais caótico e rabiscado, transmitindo perfeitamente a sensação de desespero — um momento absolutamente brilhante.

Confesso que eu próprio voltei a ter COVID neste mês de setembro, e muitas recordações dos confinamentos e dúvidas do passado vieram à tona, mas Dormindo entre Cadáveres permanece como um registo físico do auge da pandemia, para que aquela terrível fase não caia no esquecimento, É que não foi apenas um número de casos e mortes, mas também um fenómeno vivido com incerteza, medo e dor.

A região onde se passa a ação foi uma das mais afetadas do Brasil durante a pandemia, devido ao seu isolamento, fragilidades estruturais e incapacidade de lidar com a crise, o que torna esta obra ainda mais marcante.

Dormindo Entre Cadáveres

Dormindo entre Cadáveres mantém o equilíbrio entre os momentos mais intensos e os mais leves, destacando-se pelo relato genuíno de uma experiência que marcará para sempre a vida de um jovem médico, aliado a uma ilustração dinâmica e solta que complementa a narrativa honesta do argumentista. Para alguns leitores, o estilo gráfico de Parucci poderá parecer excessivamente intenso ou rabiscado, mas esse desconforto é parte integrante da experiência — é assim que se vive o caos.

A ilustração da capa é impactante e lindíssima, uma das melhores do ano. A edição portuguesa é em capa mole com badanas, papel mate e ligeiramente amarelado. Trata-se de uma adaptação da edição original brasileira da Comix Zone, publicada integralmente em português do Brasil. Nesta edição da Zigurate, todas as falas e pensamentos de Luís Moreira Gonçalves foram adaptados para o português de Portugal. Mesmo que a adaptação não seja perfeita e existam algumas falhas ao longo do livro, a decisão de adaptar apenas o protagonista — mantendo os restantes momentos em “brasileiro” — revelou-se a escolha mais acertada.

Dormindo entre Cadáveres é um romance gráfico corajoso, autentico e que teve a capacidade de me tocar emocionalmente, e que certamente fez uma marca duradoura na minha memória.


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Hugo Jesus

Co-criador e administrador do Central Comics desde 2001. É também legendador e paginador de banda desenhada, e ocasionalmente argumentista.

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