Análise BD: Coleção de Contos Best of Best – Junji Ito
Para quem não conhece (ainda) as obras de mangá do autor Junji Ito (n. 1963), o álbum Coleção de Contos Best of Best publicado pela Devir pode servir de notável referência. Pequenas histórias traduzidas para português servem assim de introdução às leituras de um criativo dedicado que é considerado por muitos um mestre do terror.

Além do horror latente e o contacto com o sobrenatural, os contos de Junji Ito correspondem amiúde a uma crítica social combinada com uma certa dosagem de humor à qual o autor raramente resiste. Por detrás do enigmático, do insano ou do bizarro, justa conceção surrealista, surgem os comportamentos exagerados das personagens com expressões a combinar: Podem ser entendidas como alegorias ou caricaturas de figuras que lidam de diferentes formas com o insólito, tornando os seus contos tão característicos.
Claro está que Junji Ito iniciou a sua carreira explorando histórias de outros autores. Este álbum coloca esse facto em evidência uma vez que alguns contos são readaptações de Junji Ito em versão mangá de obras de escritores como Edogawa Ranpo (1894 – 1965) por quem Ito sente particular admiração:
- Destaca-se o caso d’«O Homem-Cadeira» (escrito originalmente em 1925) como um exemplo de uma história tão intrigante quanto imaginativa.
- Destacam-se também «Um Outro Amor neste Mundo» de Rampo além de «Como o Amor chegou ao Coração do Professor Kirinda» da autoria de Robert Hichens (1864 – 1950); todos estes contos foram readaptados por Ito para a revista Big Comic Original (editora Shogakukan) entre 2007 e 2008.
Mas este não seria um «Best of Best» se não pudéssemos ler contos originais do conceituado mestre do terror. A criatividade de Junji Ito está patente em histórias obrigatórias como a desconcertante Biliões Solitários (publicada pela Big Comic Spirits Nº2, 2004), a fascinante A Mulher Lambedora (publicada pela Wekly Young Sunday Nº15, 2006) e a bem conhecida O Mistério da Falha de Amigara (extra da revista especial Spirits Zõkan IKKI Nº1, 2000).
Para não mencionar outras — A curta e enigmática história A Tragédia do Pilar Principal (revista especial Big Comics Spirits MANPUKU Nº2, de 1997) não poderia deixar de ser referenciada como um exemplo da melhor visão do autor, digna de nos intrigar; e, naturalmente, Vénus Invisível (Big Comics Nº9, de 2013) que explora o tema da ovnilogia imiscuído com o fascínio por uma mulher segundo o humor negro do autor.
Biliões Solitários baseia-se num fenómeno de contornos bem macabros que gera pânico e paranoia após as sucessivas descobertas de cadáveres humanos costurados em grupo. Ninguém sabe quem é responsável por este tipos de crimes nem a sua motivação. O que é certo é que o conto se apresenta como um alegoria da alienação social contemporânea, explorando a tensão entre o desejo de conexão e o horror da proximidade.
Junji Ito parodia assim de forma grotesca o sentido de identidade de cada um, dividido entre o medo da solidão e a perda da sua individualidade ou da sua alma (isto é, o que o anima e lhe dá vida) através da fusão com o coletivo, que aniquila o nosso «eu» e nos transforma numa espécie de bonecos anónimos, rendidos a eventos ou tradições por motivos de pressão social e cultural.

Já A Mulher Lambedora explora outro tipo de crime, digno de causar a maior estranheza. Insere-se num contexto próprio de um mito urbano: A história gira em torno de uma mulher misteriosa de aparência bizarra com uma grande língua, grossa e viscosa, que tem o hábito perturbador de lamber as suas vítimas isoladas em ruas escuras durante a noite. O ato da lambida não é erótico, mas repulsivo e invasivo, causando medo, nojo e até doenças.
A tensão cresce porque ninguém sabe quando ou onde ela pode voltar a surgir para atacar novamente. Ito transforma a repulsa pelo contacto físico indesejado como uma alegoria do desconforto sentido em relações sociais forçadas, bem como uma metáfora para as situações de abuso, assédio ou invasão de privacidade gerada por indivíduos que são claramente doentes, dignos de nos repugnar.

O Mistério da Falha de Amigara aparenta explorar a ideia do conformismo social no Japão, onde existe forte pressão para que cada pessoa «se encaixe» no seu papel, relacionando-o com o lado consequente que forçam o isolamento e a depressão, levando ao desejo de desaparecer e evitar a pressão social (fenómeno hikikomori) senão mesmo ao suicídio.
O enredo baseia-se numa falha de uma montanha que surge após um terramoto, onde são descobertas inúmeras cavidades de forma humana, perfeitamente esculpidas, cada uma diferente, como se fossem moldadas para pessoas específicas. Muitos curiosos afluem ao local e não são poucos os que começam a sentir uma atração irresistível, tornando-se de tal modo obcecadas pela ideia de ir até ao «buraco que lhes pertence» até entrarem e desaparecerem para sempre, deslizando lentamente até serem engolidos pela rocha.
A atração fatal pelos buracos, além de expressar o provável desejo de desaparecer, também pode ser interpretado como uma crítica à forma como a sociedade molda e encaixa os indivíduos, retirando-lhes a liberdade, apesar de estarem destinados a um fim individual e inevitável, que é a morte.

O álbum Coleção de Contos Best of Best da Devir conta com a tradução para português por Ana Ono da Silva, a edição de texto por Carla Nunes, a revisão de Patrícia Caetano, a legendagem de Ivo Marques além da colaboração do editor Rui Santos. São cerca de 270 páginas a preto e branco com dez contos ilustrados por Junji Ito que nenhum fã português deve deixar de ler. A sua arte meticulosa nunca deixa de amplificar o grotesco.
Expressa sempre o horror que nos prende o olhar porque concilia paradoxalmente o impossível com uma realidade que facilmente identificamos ou até certo ponto nos pode ser familiar, mesmo que não vivamos no Japão. As atmosferas pesadas e os ambientes propícios ao desconforto podem ser facilmente enxergados por quem se deleita com as suas histórias.
Ficamos cientes que o nosso quotidiano e perceção de «normal» podem ser interrompidos por fenómenos só bem entendidos por um autor único, fundamental para fazermos melhores leituras do que pode ser o terror contemporâneo através deste nítido contraste entre o comum e o bizarro que espreita em cada cenário.
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Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural



