A Dama Pé-de-Cabra: A Força da Lenda em BD
A publicação dos clássicos da literatura portuguesa em BD, que é fruto de uma interessante iniciativa levada a cabo pela colaboração entre a Levoir e a RTP, só poderia acabar por expôr algumas histórias valiosas que, através da lenda e da recolha de investigadores como Alexandre Herculano, revelam elementos do folclore português dignos de ser conhecidos e recordados.
Amiúde, muitos entre nós conhecem as lendas de lobisomens e das mouras encantadas. Todavia, além destas entidades sobrenaturais nativas, sobre as quais já se escreveram milhares de páginas e se encontram em muitos livros espalhados pelas bibliotecas nacionais, é quase obrigatório questionar se não existem outras mais, dignas de referência.
Certamente que existem! Talvez não sejam tão populares e muitas tenham desaparecido quase por completo da nossa memória outrora alicerçada em tradições orais, como as que dão conta da presença dos trasgos, dos olharapos e de outros seres ainda mais misteriosos. Mas a Dama Pé-de-Cabra merece ser destacada dentro deste contexto.
Dama Pé-de-Cabra
Quem é afinal a Dama Pé-de-Cabra? Trata-se de uma mera personagem que serve de disfarce do Diabo, presente numa lenda medieval, claramente projetada com propósitos de enaltecimento da Cristandade, dos ideais de nobreza e com clara propaganda de combate aos inimigos da Fé? Ou serve de elemento ilustre e mítico para reforçar as origens sobrenaturais de uma família nobre, de um modo similar à da sereia Melusina que é antepassada dos Condes de Lusignan?
Tratar-se-á na verdade de uma entidade feérica, senhora do reino das fadas, convertida numa figura do mal e da feitiçaria ao longo dos tempos? Ou seria sobretudo uma antiga deusa pagã, cujo verdadeiro nome já foi há muito esquecido ou desassociado de outras entidades femininas, adoradas pelos Lusitanos e outros povos nativos há mais de 2000 anos atrás?
Deusa e Fada
Por incrível que pareça, a Dama Pé-de-Cabra parece corresponder às descrições de todas estas perguntas, revelando até que ponto é uma figura mais complexa do que uma das versões mais conhecidas da lenda sugere: Deusa e fada, fabulosa antepassada de uma orgulhosa linhagem da nobreza, converteu-se numa figura associada com o Diabo (neste caso, mais com o demónio Belzebu) devido à influência das visões menos tolerantes do Cristianismo para com entidades sobrenaturais associadas ao poder da mulher, à magia e ao mundo pagão.
O volume 7 da coleção dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD, que conta com a adaptação de Manuel Morgado, corresponde à versão presente na obra Lendas e Narrativas (1851) de Alexandre Herculano e procura homenagear o próprio autor à luz da importância dos seus contributos literários, fiéis não só ao registo de elementos de investigação histórica e etnográfica, mas também ao espírito do Romantismo. Não replica um trabalho mais aprofundado dentro do que seria desejável para explicar todo um conjunto de teorias, mas é fiel ao imaginário que sobreviveu sobre a mítica Dama. Trata-se de uma personagem suspensa no poder do mito, representativa de um Portugal misterioso e profundo que etnógrafos e antropólogos dos últimos dois séculos tiveram imenso trabalho a descobrir.
Parece ser necessário reforçar que a deusa Atégina, estudada por Joaquim de Vasconcelos (1849 – 1936) e Teófilo Braga (1843 – 1924) além de outros investigadores, também se associa com as cabras, à qual foram possivelmente sacrificadas durante o período áureo do seu culto, na antiga Lusitânia e Bética. A Dama Pé-de-Cabra bem poderia ter sido uma referência a Atégina, mas é bem possível que outras deusas ocupavam funções e detinham caraterísticas similares.
Explica-se por isso que em Marialva exista uma versão da lenda que se refere à misteriosa Dama que era na verdade uma donzela conhecida por Maria Alva, que havia nascido com pés de cabra: É curioso que esse nome se aparente mais com «Mara/Moura Alva» que são dois nomes de origem milenar e se poderia referir a uma figura (Mara, isto é, «Moura» ou Morta) que evoque a tragédia que pesa sobre a lendária maldição de tantas mouras encantadas.
Alva, suspensa na toponímia de Portugal, relaciona-se mesmo com locais de valor arqueológico relacionados com cultos ancestrais tal como Barca d’Alva, a Serra do Alvão e o rio Alva, entre outros.
Da mesma forma que o corpo de peixe revela que as sereias são ninfas ou entidades feéricas relacionadas com o mundo marinho, de uma forma idêntica à das mouras encantadas têm corpo de serpente — animal que tanto se relaciona com o mundo ctónico, as linhas telúricas em conciliação com o reino aquático —, os pés de cabra são uma assinatura terrena, dos bosques, ou da montanha da Dama que também é, evidentemente, uma «fairie» (durante a Idade Média este nome evoluiria para «fada» devido à influência da palavra latina fatum = destino, da qual deriva a palavra fatal.)
Os espíritos femininos conhecidos por fairies são habitualmente interventivos no destino dos mortais, sejam as elfas, sejam as Moiras (ou as três Parcas), sejam as mouras encantadas, sejam as ninfas, sejam as nixies ou as sereias, sejam outras. Tal como Melusine, a Dama Pé-de-Cabra é um espírito dessa categoria. Não por acaso, sobreviveu ainda a lenda de Dona Marinha, donzela sobrenatural relacionada com o mar, que teria tido escamas como peixe e também os pés de cabra.
Entre a História e Fantasia
Através do Número 7 dos Clássicos da Literatura Portuguesa em BD devemos ter em conta que é mais do que Alexandre Herculano que está a ser homenageado. O segundo volume de Lendas e Narrativas não existiria se não tivessem existido outros autores que escreveram sobre uma figura lendária, pretendendo relacioná-la com as origens ilustres de várias famílias.
A lenda da Dama Pé-de-Cabra já se encontrava registada no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, escrito por volta de 1344. Alexandre Herculano considera que essa lenda, transmitida oralmente, já teria sido compilada no século XI e por isso a menciona como «A Dama Pé-de-Cabra, Rimance de um Jogral.»
Este tema foi explorado pelo historiador Luís Kruz (1954 – 2005) que escreveu sobre a Dama no artigo intitulado «A morte das fadas: a lenda genealógica da Dama do Pé de Cabra» publicado na revista Ler História Nº 6, em 1985. Krus analisou a figura da Dama Pé-de-Cabra a partir de uma perspetiva genealógica, explorando as narrativas dos livros de linhagens medievais, que frequentemente incorporam elementos míticos e sobrenaturais, servindo-se e adulterando lendas para legitimar origens excecionais, associando-as a ancestrais lendários e sobrenaturais, como fadas ou outras entidades míticas.
De igual forma, esta perspectiva foi acompanhada por José Mattoso (1923 – 2023) que é autor do livro Narrativas dos Livros de Linhagens (2020) e descreve a ausência de seriedade e a inclusão de figuras lendárias ou fantástica como a lendária Dama no que toca ao enaltecimento dos antepassados ou das famílias dos nobres durante a Idade Média.
O autor Manuel Morgado, que adapta e ilustra este álbum, mantém-se fiel à versão da lenda que se refere ao Conde D. Diego Lopez, senhor da Biscaia, como o responsável por ter casado com a Dama. Temos de ter em conta que D. Diego Lopez existiu mesmo e terá nascido em 1075, mas não há nenhuma prova clara de se ter casado ou de se relacionado com uma donzela sobrenatural, como é óbvio.
Mas o que foi escrito reafirma que não só encontrou uma dama com pés de cabra durante uma caçada, como decidiu casar com ela, tendo como uma única condição jamais se benzer diante dela. Com a Dama teve dois filhos: D. Inigo Guerra e Dona Sol, dois nomes intrigantes, que parecem fazer eco de duas figuras mitológicas ou fabulosas, mas que nunca foram registadas em documento histórico algum.
Ora, segundo a lenda, após uma caçada bem sucedida, D. Diego Lopez terá procurado premiar um dos seus cães com um pedaço de carne, mas a cadela da Dama Pé-de-Cabra ataca o seu cão e mata-o, fazendo com que D. Diego se benzesse, tomado pelo horror. A partir daí a Dama Pé-de-Cabra eleva-se descontrolada no ar, transforma-se num ser de aparência demoníaca, agarra a jovem filha Dona Sol e desaparece como que por magia, amaldiçoando D. Diego por este quebrar a promessa. Insatisfeito e desgostoso com o sucedido, o nobre decide partir e junta-se a outras tropas para combater os Mouros, permanecendo longe de casa durante anos a fio.
Uma lenda com três partes
A primeira parte (Trova Primeira) desta lenda é por demais conhecida. A Dama é notoriamente identificada com o Diabo e durante muito tempo houve quem o considerasse assim, reconhecendo a lenda como um aviso à tentação que algumas mulheres poderiam exercer nos homens que se desviavam dos seus caminhos de retidão, sobretudo da sua devoção para com Deus. Ela é um símbolo do pecado. A dedicação posterior do conde D. Diego Lopez que parte para guerrear os Mouros parece ser uma forma de compensação por ter negligenciado os seus deveres, combatendo os inimigos de fé. Só o seu filho, D. Inigo, permanece na Biscaia.
A segunda parte (Trova Segunda) descreve como D. Diego Lopez, ao confessar-se a um abade, havia descoberto mais sobre a Dama Pé-de-Cabra e porque partiu para combater os Mouros em sinal de penitência. D. Inigo, o filho do conde, revela por sua vez o que sabe a um pajem: Descreve que a Dama Pé-de-Cabra é a alma penada de uma mulher adúltera que pode ser encontrada numa serra próxima. A dama havia sido casada com outro homem, um antigo senhor da Biscaia, que controlava o território durante o domínio dos reis Godos. Mas traiu esse homem. Apesar de ter algum poder e liberdade é pela força de uma maldição que se vê obrigada a deambular pelos bosques selvagens e a percorrer a serra juntamente com o espírito do seu amante, transformado em onagro, para todo o sempre.
Já na terceira parte (Trova Terceira) D. Inigo Guerra decide-se a pedir ajuda à Dama para resgatar o seu pai D. Diego Lopez, preso pelos muçulmanos em Toledo. Ela então invoca o onagro (de nome Pardalo) para o ajudar, acedendo ao seu pedido. Na posse do animal sobrenatural e de tamanho considerável, que parece provir diretamente do Inferno, o jovem cavaleiro consegue viajar até Toledo, livrar-se de todos os que surgem no seu caminho gerando fortes tempestades e libertar o seu pai, regressando para casa em segurança.
E assim termina a lenda, sabendo-se que o conde D. Diego Lopez acaba por falecer pouco tempo depois após o seu regresso. Nunca o conde deixou de rezar e cumprir os seus deveres para com a igreja, confessando-se semanalmente, enquanto o filho, porventura, continuou a servir como guerreiro, nunca deixando de montar o poderoso onagro, acreditando-se que teria vendido a sua alma a Belzebu, que não é outro senão o que acolhe o espírito da sua mãe.
A Arte do Álbum
Recomendando ao público juvenil, dos 10 aos 12 anos, o álbum Nº 7 da coleção Clássicos da Literatura Portuguesa em BD não deixará de interessar um publico mais alargado, incluindo adolescentes e adultos que se interessam por contos e lendas. Toda a adaptação da obra compilada por Alexandre Herculano, incluindo o argumento, o desenho, a ilustração, cores e a legendagem é da autoria de Manuel Morgado, que procurou expressar com detalhe muito do que reconhecemos da época medieval que nos conduz mais para um imaginário de um conto fantástico.
Além dos desenhos de qualidade, não podemos ignorar as pranchas coloridas e a presença forte de uma Dama Pé-de-Cabra trajada de vermelho, símbolo da tentação ligada ao adultério e à luxúria.
A guerra e o combate estão patentes nesta obra, com páginas repletas de ação. Evidencia-se as lutas contra os sarracenos e a arte de combater dos guerreiros cristãos como o nobre D. Diego Lopez, também referido em Portugal como D. Diogo Lopes. Mais de que a Dama Pé-de-Cabra, outra figura sobrenatural percorre parte das páginas deste álbum, que é precisamente Pardalo, aqui retratado como um cavalo negro selvagem, de olhos vermelhos.
Figuras e elementos demoníacos sobressaem, que assentam como uma luva nas visões de criaturas infernais que só poderiam estar relacionadas com estas entidades que não pertencem ao nosso mundo. Claro está que essas visões propõe reformular a mensagem da lenda (ou do mito) por detrás da Dama e de Pardalo, personagens que aqui perdem os atributos pagãos para serem reinterpretados como demónios e parentes de Belzebu (antigo deus também convertido num demónio.)
Sobre o livro
O álbum A Dama Pé-de-Cabra é de capa dura (sobressaí pelo tom amarelo) e contém 58 páginas. A parte final do álbum de BD contém também um dossier da autoria de José Vieira dedicada a Alexandre Herculano, à sua obra literária e ao contexto em que surgiu a compilação da lenda da Dama Pé-de-Cabra. A adaptação gráfica conta com o trabalho de Hugo Jesus e o design de capas é da Silva Designers. Através deste valioso Nº 7, impresso em 2024, capaz de evidenciar e lançar maior luz sobre alguns aspetos do folclore português, é certo que a coleção Clássicos da Literatura Portuguesa em BD da Levoir em colaboração com a RTP só pode ficar mais rica.

Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural