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Análise BD: Tomahawk, de Patrick Prugne

A história de “Tomahawk” decorre em 1756, no contexto da Guerra dos Sete Anos, também conhecida como French and Indian War. 

O leitor é levado para um forte francês perdido no coração da floresta do Novo Mundo, onde convergem milicianos canadenses, soldados franceses, padres jesuítas e guerreiros ameríndios. Ali vivem amores secretos, sonhos do futuro, tensões e tragédias — enquanto do outro lado da história, os britânicos com suas “túnicas vermelhas” patrulham a fronteira oeste, ávidos por controlar territórios.

Prugne entregou um trabalho visual exuberante: as páginas em banda desenhada são tratadas como telas entremeadas de cera e aguarela, com explosões de cores terrosas — verdes intensos, ocres, carmins — e traço pictórico que imprime quase um reflexo da luz filtrada pelas copas das árvores. Cada quadro tem o peso de uma pintura que fala da dureza da guerra e, ao mesmo tempo, da melancolia da vida ao ar livre.

Tomahawk, de Patrick Prugne

É curioso como Prugne evita o maniqueísmo: não há “índio bom” ou “francês puro” — antes, há indivíduos atravessados por conflitos internos, medos, crenças e alianças. Isso lembra muito a tradição europeia de narrativa histórica em BD, mas temperada com uma sensibilidade nativa que humaniza os ameríndios e expõe a ambiguidade moral dos colonos e jesuítas.

Os padres jesuítas surgem como personagens secundários porém fundamentais, observando e aspirando mediar este mundo em transição — entre a floresta “selvagem” e a civilização europeia, entre a fé e a pólvora.

Os diálogos são escassos, pontuais — quase breves murmúrios em meio a vinhetas silenciosas que dizem tanto quanto as poucas falas. O silêncio reina, e em vez de palavras, a poderosa presença visual das folhas, raízes, neblina e corpos cansados transmite tensionamento emocional e histórico.

Ao folhear este ‘Tomahawk’, tenho a sensação de estar a vislumbrar, através de um vitral soprado em aguarela, o instante suspenso entre a alvorada e o bafo noturno, onde guerreiros indígenas circulam em silêncio, feitos sombras entre os carvalhos, e padres jesuítas contêm o olhar numa curva de fumaça. Prugne pinta com pata de urso e alma de monge, imprimindo na página a fisicalidade da guerra e a poesia do silêncio.

Esta obra é, acima de tudo, um hino à melancolia e à beleza que brota do caos. O contraste entre a brutalidade dos confrontos e a delicadeza visual dos ambientes cria uma tensão quase quase musical — imagens que leem como notas tocadas no fundo da mata, anunciando uma tragédia anunciada.

Tomahawk, de Patrick Prugne

A riqueza histórica é outro ponto alto: vivemos o conflito entre França e Inglaterra por territórios e alianças indígenas, mas visto por dentro do forte, onde as tropas dividem espaço com sonhos, orações e rezas silenciosas. É como se o leitor fosse um espião que escuta o bater do coração do passado.

Se eu apreciasse romances históricos, diria que Prugne conseguiu — com traço e silêncio — escavar aquilo que resta das ruínas daquela realidade sedutora mas ao mesmo tempo triste da época em que se foca esta obra. Eu posso inclusive considerar que tal como o livro Pocahontas que também analisei aqui no Central Comics, Prugne não me seduz na escrita e nas suas narrativas, mas o seu desenho é um deleite visual. 

Porquê?

  • Por vezes, a narrativa peca por falta de diálogo explicativo: se procuras grandes conversas ou análise minuciosa dos conflitos políticos, talvez sintas a história curta (96 páginas). Mas esta é mesmo a proposta: sugerir, evocar.

  • A sensorialidade visual exige leitura devagar, voltada para os detalhes — o que pode frustrar quem gosta de ação contínua. Mas recompensa generosamente quem se permite mergulhar no ritmo cadenciado da floresta e da guerra.

Tomahawk é um convite: mergulhe nas páginas como quem entra na mata, respeite os tempos do silêncio, admire cada pincelada e sinta o eco dos passos de todos que aqui passaram — colonos, guerreiros, monges e silêncios. Para quem aprecia banda desenhada histórica, contemplativa e estética, é pintura e poesia com sabor de pólvora.

Tomahawk, de Patrick Prugne

A edição portuguesa de Tomahawk, lançada pela Ala dos Livros em junho de 2025, é uma verdadeira joia editorial — à altura da arte de Patrick Prugne.

Edição em capa dura, formato grande (aproximadamente 24 x 32 cm), mantendo o estilo das edições franco-belgas clássicas — ideal para valorizar a arte panorâmica e minuciosa de Prugne:

– Papel couché de alta gramatura,fosco e resistente, que evita reflexos e realça a textura das aguarelas. As cores aparecem vibrantes, mas com a suavidade original do autor.

– A impressão é impecável, com alta fidelidade cromática: os verdes das florestas, os cinzentos da neblina e os tons terrosos da pele e das armas surgem ricos em profundidade e nuance. A tradução para português é elegante e fluída, respeitando a cadência dos diálogos originais e o tom introspectivo da narrativa. As falas soam naturais sem perder a solenidade histórica.

– A edição portuguesa inclui, tal como a original francesa, um dossiê final de esboços e estudos visuais. São páginas com os desenhos preliminares de personagens, cenas e paisagens, onde se vê o processo criativo de Prugne em carvão, lápis e aquarela.

– Há também mapas e documentos históricos ilustrativos que contextualizam a narrativa: localização dos fortes, povos indígenas envolvidos, uniformes, etc. Estes extras tornam o livro ainda mais valioso para quem aprecia história e arte gráfica.

– A capa é simples, mas poderosa: uma imagem icónica (um guerreiro índio com tomahawk em punho, silhuetado contra o céu enevoado), com título em relevo e um acabamento mate com toque aveludado. 

– A lombada é reforçada, adequada para bibliotecas e colecionadores.

Tomahawk, de Patrick Prugne

Conclusão:

É um livro que não se lê apenas — tacteia-se, folheia-se como quem percorre uma floresta com dedos em vez de pés. As folhas são espessas como peles estendidas ao sol, e o cheiro da impressão lembra o das páginas antigas onde dorme o tempo. Uma edição pensada para durar — como as memórias que não se apagam. Um livro muito bonito que enfeita uma sala de estar ou uma mente carente. 
Boas leituras ☺️
Carlos Maciel

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.

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