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Análise BD: A Trilogia Nikopol

Publicado recentemente pela editora Devir, o álbum d’A Trilogia Nikopol está agora de novo disponível para o público português que considera imperdível a obra criativa do desenhador e escritor franco-jugoslavo Enki Bilal (nascido em Belgrado, em 1951.)

Num único volume de capa dura e com cerca de 180 páginas a cores, temos a oportunidade de ler A Feira dos Imortais (La Foire aux Immortels, 1980), A Mulher Armadilha (La Femme Piège, 1983) e Frio Equador (Fugue de Futur, 1993.), num novo formato mais pequeno e a um preço mais acessível do que habitual.

Trilogia Nikopol

Enki Bilal procura representar um futuro distópico através desta curiosa trilogia sensível à decadência das sociedades e às lutas pelo poder que, muito por acaso, se sucedem cronologicamente nos dias de hoje (entre 2023 e 2025) combinando diversos fenómenos próprios de mitologia, religião e política em cenários próprios de ficção científica.

Quase nos surpreendemos pela inclusão de elementos do quotidiano que hoje estão em completo desuso (telefones, cabines de telefone, máquinas de escrever, televisões volumosas) a par de meios de transporte um pouco mais avançados, ainda que os sinais de degeneração estejam um pouco por todo a parte, retratados pela sua arte assinalável, à qual não lhe escapam os detalhes (sujidade, humidade, ferrugem, caos) de locais marcados por degradação ou até por danos originados por conflitos de todo o género.

O grotesco, que se insinua até pela presença de criaturas alienígenas exóticas ou seres estranhos, atinge um patamar surreal.

Trilogia Nikopol

Nesta história de três capítulos, acompanhamos o regresso de Alcide Nikopol, um dissidente dos anos 90 do século XX, a uma cidade de Paris controlada por um regime fascista, despertando do seu sono criogénico para se dar conta que é usado pelo deus Hórus para tentar chegar ao poder.

Simultaneamente, uma nave em forma de pirâmide onde se abrigam outros deuses que também encaram Hórus como um dissidente, permanece nos céus de Paris, não deixando ninguém indiferente. Os deuses chefiados por Anúbis e Bastet têm também os seus próprios planos e sentem-se forçados a agir para travar Hórus de vez.

Trilogia Nikopol

É peculiar que, nesta história ficcional, o retrato do fascismo que favorece a população privilegiada de Paris seja uma cópia descarada do regime promovido por Mussolini, consentido por um chefe da Igreja estranhamente alienado da realidade e o seu final trágico-cómico provém dessa circunstância.

Parece que o único ser ciente do que mau carácter destas personagens que tentam partilhar entre si o poder é um gato psíquico de listas verdes e brancas, chamado Gogol, que contrasta em quase absoluto com os tons sombrios dos senhores do regime.

Enki Bilal explorou muitas cores frias, sombras pesadas ou a procura de sobriedade, a par de construções brutalistas que se insinuam na paisagem urbana, para nos transmitir uma atmosfera fechada e melancólica nesta história. Se as cores do gato Gogol exprimem algo de bizarro visualmente, o mesmo se aplica à marcante personagem que surge na segunda parte da trilogia (em A Mulher Armadilha): a mulher de pele branca e cabelo azul chamada Jill Bioskop.

É como se ambas as personagens pertencessem ao mundo do sonho, cada uma dos quais enquadradas em diferentes contextos oníricos, contrastantes com a imposição das regras que se lhes impõem.

Trilogia Nikopol

Jill Bioskop acaba por se tornar amante de Alcide Nikopol. Mas Jill procura a sua auto-determinação e liberdade num mundo de repressão, onde os seus sonhos mais intensos revelam a propensão (instinto ou fantasia?) para matar quase todas as figuras masculinas que se tentam envolver com ela.

Talvez Alcide Nikopol nunca chegue a compreender verdadeiramente Jill, ele próprio um alienado, fora do tempo, que procura realizar-se através da sua fusão com Hórus como um extraordinário jogador de Chess-Boxing — a combinação de duas modalidades de competição para jogadores extraordinários, aqui revista como uma crítica parodiada por Enki Bilal.

Jill torna-se a personagem principal de um filme que acaba por ser filmado e concluído pela mesma, elevando a fasquia de questões de ordem existencial que coloca a si mesma num mundo de absurdos, onde os jogos de poder, a corrupção e as lutas internas levadas a cabo por seres humanos divididos entre várias fações quase perdem todo o sentido.

Trilogia Nikopol

A inclinação para o que há de surreal na obra de Enki Bilal serve de base para a crítica. É por isso que há um determinado simbolismo que podemos reter entre os absurdos que notamos ao longo da trilogia. Na primeira parte (A Feira dos Imortais) vemos que a classe privilegiada de Paris é essencialmente composta por homens maquilhados que não têm problemas em suprimir por completo o papel das mulheres na sociedade.

Já na segunda parte (A Mulher Armadilha) vemos como Jill encara com curiosidade os atos de conflito em Berlim levada a cabo pelos islamo-cristãos que chamam à sua luta de «Eierkrieg» ou «A Guerra dos Ovos» e que atinge patamares abstratos. Não podemos ficar igualmente indiferentes ao estranho comboio que se dirige para a exótica Equador-City (em Frio Equador) ocupado maioritariamente por animais da Savana serão mesmo animais ou é a forma como o filho de Nikopol, que viaja de comboio e conhece a bela Yéléna, vê todos os outros ocupantes dessa forma, como expressiva e crítica visão dos europeus em relação aos habitantes de África ou de outros locais do planeta, desumanizados?

O que há de marcante na Trilogia Nikopol é a reflexão sobre o futuro da condição humana, sempre incerta. Enki Bilal transporta-nos para o pessimismo:

  • Expõe as suas personagens a absurdos, forçando-nos a questionar muito, começando até pela importância da nossa relação com o divino
  • Os deuses do Egipto são conservadores em muitos aspetos (não progrediram em termos de uso de combustíveis fósseis ultrapassados) e o alto representante da Igreja já perdeu a noção do mundo em que vive, rodeado de querubins alienígenas que representam um perigo para si mesmo.

O desporto ou qualquer gesto competitivo assume-se prontamente como violento. Os jogos de poder nada têm de novo ou surpreendente, tal como os regimes que se sucedem, em tudo falíveis. Nikopol vive, paradoxalmente, um regresso ao mundo onde tem biologicamente a mesma idade do filho e ambos são habitualmente confundidos — a possível alegoria de uma geração que se adia ou que nada conquista senão através do legado da geração anterior.

Na década de 80 do século XX, Enki Bilal assumiu-se como um criativo cujas visões estavam realmente em consonância com os temores do futuro péssimo, prevendo-se que tanto as conquistas e as falhas do presente passariam a ser carregadas às costas pelas gerações vindouras, que viriam a pagar um preço elevado.

A ideia de que mundo que conhecemos permaneceria fraturado pelo caos, pela distopia, pela insegurança e até pela loucura, após possíveis conflitos armados de ordem nuclear e banalização de problemas de ordem social e da política, não era estranha. É por isso que quase tudo se assevera nestas histórias, permanecendo os sinais de conflito, de negligência ou dos princípios impessoais e desumanos.

Esta obra de BD fundamental conta com a tradução para português de Paulo Salgado Moreira, além da colaboração de Fernanda Vizcaíno (revisão), Ana Lopes (adaptação gráfica) e Susana Resende (legendagem), contando ainda com os apoios de Nuno Murjal (direção de produção) e Rui Santos (editor.)


Bruno Lourenço

Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural

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