Central Comics

Banda Desenhada, Cinema, Animação, TV, Videojogos

Entrevista: Alcimar Frazão (Lovistori)

Alcimar Frazão tem um novo livro publicado em Portugal. Chama-se “Lovistori” e já está disponível na banca da Polvo do Amadora BD. Aproveitámos para lhe fazer umas perguntas.

Central Comics: Depois de “O Diabo e eu”, realizado enquanto autor completo,  e “Cadafalso”, realizado em colaboração com outros autores, a nível do argumento,  “Lovistori” é o teu terceiro livro publicado em Portugal, desta feita com um argumentista, o Lobo. Como surgiu e evoluiu esta colaboração?

Alcimar Frazão
@Alcimar Frazão, Instagram

Alcimar Frazão: Embora costume preferir trabalhar com meus próprios textos, eu aprecio muito as parcerias. O próprio “Cadafalso”, ainda que baseado em argumentos meus, tem roteiros escritos em parceria com Dalton Cara, Magno Costa e Lourenço Mutarelli. O meu critério sempre foi as histórias fazerem sentido dentro do repertório de histórias que me interessam, que falam de lugares e pessoas que fazem sentido no meu percurso. “Lovistori” vem nesse lugar.

É uma história de gente pobre, sofrida, tentando levar o dia a cabo. É o tipo de história que eu escreveria, de alguma maneira… Essas coisas me interessam. Pensar e contar histórias de gente que vive uma vida na luta diária, uma vida rés do chão, cujo grande acontecimento é viver.

O “Lovistori” surgiu de um convite do Lobo, o roteirista, para que eu olhasse o texto (que ele queria oferecer para outra artista) e desse minha opinião. Eu gostei do roteiro de cara. Gosto da ideia de uma vida tão grande que não cabe na vida material, na vida da cidade, que o texto traz de alguma maneira. Gosto do tom absurdista (num sentido existencial mesmo) que costura a trama, com uma cidade que obriga às aparências. Quando disse ao Lobo que gostaria de fazer, isso lá em 2015, a história começou a acontecer.

Daí veio a vida mudando os planos. Fui avançando em outros projetos e só retomamos o “Lovistori” em 2019. Na ocasião estava em Beja, para lançar “Cadafalso”, e uma conversa com o Rui, da editora Polvo, trouxe o projeto de novo para o primeiro plano. Fizemos a proposta no Proac, um edital de fomento à Cultura no Estado de São Paulo, e fomos contemplados.

Daí foi voltar ao livro, repensar o texto, retomar a pesquisa visual e aprofundar as questões do livro. Nesse processo a cumplicidade e a parceria com o Lobo foi muito intensa e isso está materializado no livro. Lobo tolerou muitas das minhas idiossincrasias criativas com o melhor espírito e acabamos reescrevendo o roteiro juntos, sempre em cima do texto original dele.

Lovistori
Interior de Lovistori, @Polvo, Facebook

CC: “Lovistori” trata de assuntos como a transsexualidade ou a violência policial. Sentiste-te à vontade para abordá-los?

Alcimar Frazão: Eu sou da opinião que o artista deve falar sobre absolutamente tudo que o interessar. Isso não é, contudo, um salvo conduto para divulgar bobagens ou preconceitos mas sim para se expor ao risco de criar. Para ouvir o outro e produzir sensibilidades frutos dessa troca. Naturalmente não cabe ao artista emular um lugar que não lhe pertence.

Ele sempre vai falar a partir de seu próprio lugar no plano social, a partir de sua própria história. É preciso ter consciência disso e é preciso ter empatia com as histórias, com as personagens… Todo brasileiro de ascendência negra e/ou que nasceu na periferia das grandes cidades sabe na pele, muito bem, que a polícia é uma das instituições mais violentas, perversas e corruptas do Brasil. É um aparelho do Estado organizado para viabilizar o genocídio do povo negro, pensado ainda durante a colonização. Ainda que a história não fale abertamente disso, esses ecos estão lá, na inviabilidade da relação de Paixão (um policial negro, como muitos) e Sereia.

Quanto à questão trans, a empatia não é uma qualidade com a qual todos nascemos. Ela é um traço cultural que precisa ser cultivado e a arte é um dos meios desse cultivo. Nós queríamos muitas coisas com “Lovistori” mas não queríamos, de jeito nenhum, que a violência da trama fosse uma fetichização da violência que essas pessoas, esses corpos, passam diariamente. Não queríamos apenas reforçar a violência diária.

Veja, não se trata de mascarar mas de ser empático, de mostrar as personagens com as subjetividades que as competem, que as pessoas que conhecemos tem. Toda personagem é um microcosmo repleto de significados e mostrar isso, ao invés de mecanizar as ações das personagens para que a trama aconteça, é construir uma narrativa empática. Não reforçar uma violência explicita, graficamente, é um exercício narrativo empático. 

Nesse processo, foi também fundamental para aprofundar esse olhar mais cuidadoso e solidário a leitura crítica que fizeram da obra a Priscila Fróes, travesti, putafeminista e artista visual, e a Monique Prada, escritora e putafeminista. Elas fizeram uma leitura atenciosa do roteiro, problematizando algumas questões sobre violência visual, representação, o lugar das personagens travestis na literatura, certo destino trágico que está sempre muito presente…

As coisas que elas falaram não mudaram necessariamente a história que estávamos contando, mas mudaram totalmente a perspectiva da história. Mudaram o modo como decidimos ir a cabo com a trama e tiveram um impacto decisivo em como construímos a sequência final.

CC: Como foi  recebido o livro no Brasil, tanto pela crítica como pelos leitores?

Alcimar Frazão: No Brasil o livro tem sido bem recebido desde seu lançamento. O álbum teve uma boa repercussão na mídia brasileira não apenas no meio de histórias em quadrinhos mas em jornais de grande circulação. O livro figurou entre as primeiras posições nas principais listas de melhores do ano de 2021, quando foi lançado.

Em 2022, venceu o prêmio Minuano de literatura, um prêmio muito especial, do Rio Grande do Sul, como melhor obra em quadrinhos, e venceu também troféu HQ Mix como melhor arte final, além de ter sido indicado ao CCXP Awards na mesma categoria. A resposta dos leitores e leitoras também tem sido a melhor possível. É muito comum as pessoas virem falar conosco, em eventos, emocionadas com a narrativa, ou nos contatarem nas redes sociais sobre o quanto a história os tocou.  

Lovistori
Exemplares de Lovistori, @Polvo, Facebook

CC: Em Portugal estás a ser publicado pela Polvo na colecção “Romance Gráfico Brasileiro”, que conta já com 33 títulos e é especificamente dedicada à produção contemporânea de Quadrinhos brasileira. As capas dos teus três livros pela Polvo são sempre diferentes das brasileiras. Fala-nos um pouco sobre isso.

Alcimar Frazão: Primeiro quero dizer que a coleção “Romance Gráfico Brasileiro” editada pela Polvo é, na minha opinião, a melhor curadoria de material autoral brasileiro feita hoje. A coleção é incrível e, com poucas lacunas,  compreende o que de melhor tem sido produzido no Brasil neste momento. Existe uma revolução acontecendo nos quadrinhos brasileiros nos últimos 15, 20 anos e a coleção mostra bem isso. É um grande orgulho figurar ao lado de tanta gente boa. 

Sobre as capas, nunca me considerei um bom capista. A ideia de produzir uma ilustração exemplar do conteúdo da obra é um pouco intimidadora e eu trabalho pouco com cores (o que pode atrapalhar em fazer uma boa capa). Creio que a primeira capa colorida que produzi em minha carreira foi justamente para a Polvo, para a edição de “O Diabo e Eu”. Naquela ocasião produzi 3 imagens.

Gostei tanto delas que todas viraram capas de edições do livro (Portugal, Espanha e relançamento no Brasil). Tenho, sempre que possível, tentado produzir capas novas para as edições que saem fora do Brasil, por que penso que essa seja uma experiência importante para o leitor, de poder observar outra abordagem daquela narrativa. A capa é parte da narrativa do livro, não é apenas um invólucro. Se você produzir uma imagem que entregue demais, ou de menos, você pode comprometer a aproximação.

O “Cadafalso”, por exemplo, é um livro que acho que sofre de capas sérias demais. Talvez por que ele seja, para mim, um livro mais difícil mesmo. Para a edição de “Lovistori”, da Polvo, fiz uma releitura da capa brasileira estendendo a paisagem da imagem para as dobras das orelhas (badanas) e construindo de outra forma a composição das personagens.

Isso faz a capa ganhar mais conceitualmente, por que a paisagem da cidade é uma personagem importante na trama.  Isso não foi possível na edição brasileira, porque a capa tinha o formato simples, sem orelhas, e a paisagem praticamente desaparece na composição.

E para  não perderes nada sobre o Central Comics no Google Notícias, toca aqui!

Além disso, podes seguir também as nossas redes sociais: 
Twitter: https://twitter.com/Central_Comics
Facebook: https://www.facebook.com/CentralComics
Youtube: https://www.youtube.com/CentralComicsOficial
Instagram: https://www.instagram.com/central.comics
Threds: https://www.threads.net/@central.comics

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Verified by MonsterInsights