Daredevil: Born Again – Quando o diabo é o herói
A mais recente série da Disney+ sobre uma personagem heróica do universo Marvel não poderia ser melhor: Dá continuidade a Daredevil estreado pela Netflix em 2015 (que contou com três temporadas além do crossover em The Defenders de 2017) e se auto-intitula Daredevil: Born Again, contando novamente com o actor Charlie Cox (n. 1982) no papel de Matt Murdock ou antes e, secretamente, Daredevil, vigilante urbano de Hell’s Kitchen, na cidade de Nova Iorque.

Entre nós, Daredevil ainda é conhecido por «Demolidor,» um nome que nunca evocou de todo o simbolismo e a imensa profundidade psicológica por detrás de um homem de fé, claramente católico, que opta por combater o crime trajado de Diabo. Porquê o Diabo? Como poderia ser o suposto adversário ou opositor do «Bem» uma representação digna da Justiça?
Ora, os trocadilhos e os paradoxos são notáveis quando o conteúdo de uma obra de ficção inteligente, fiel ao princípio de um bom trama, dotada de conteúdo crítico e evocativo de teor irónico (ou até, por vezes, metafórico e ocultista) explora este lado da sombra no herói. É o reverso da medalha daquele que age para contrariar o reino dos delitos pelas próprias mãos, por vezes da forma violenta, sujeito a transgressões, o que nos leva a questionar se a própria personagem não acabará por ir longe demais ou subverte tudo aquilo que sempre pareceu defender com claro e determinado empenho.
Os jogos psicológicos presentes em toda a obra de Daredevil — digna de fazer jus a conteúdos mais densos dos que são habitualmente explorados noutras BD’s da Marvel Comics — revelaram sempre até que ponto um sistema e uma ordem são falíveis, já que a corrupção e o crime podem instalar-se em todos os níveis. Durante o sono de Deus, quem escolhe fazer justiça entre os mortais é o Diabo!
E porque o Diabo é «cego» tal como Samael, as suas ações serão bem mais intrépidas e menos contidas, contrabalançando as incorreções de um mundo inseguro, brutal e trágico, como por vezes reconhecemos nas ruas de Nova Iorque, em bairros inóspitos ou noutras tantas outras cidades que nós conhecemos ou das quais já ouvimos falar vezes sem conta.
O vigilante mascarado conhecido por Daredevil surgiu em Abril de 1964, numa publicação da Marvel nas quais trabalharam Stan Lee (1922 – 2018) como roteirista e Bill Everett (1917 – 1973) como desenhador. Ainda que Stan Lee e Bill Everett sempre tenham sido apontados como os criadores originais desta personagem, houve sempre quem indicasse a colaboração do lendário Jack Kirby (1917 – 1994) no trabalho de design do herói, incluindo o bastão que usa como arma defensiva.

A criação de um advogado cego que ganhou sentidos aguçados após ser atingido por um produto químico enquanto salvava um homem de ser atropelado é particularmente marcante: O jovem herói que dá pelo nome de Matt Murdock vive dotado de uma espécie de sexto sentido, o que o torna adequado para ser treinado pelo cego Stick, um hábil combatente de artes marciais que o prepara para tirar todo o partido das suas habilidades e dos seus sentidos desenvolvidos.
De uma forma notória, Matt Murdock tem as características adequadas a um Bruce Wayne/Batman que por acaso sempre foi milionário e nunca estudou Direito, ainda que nalguns pontos vejamos traços em comum entre ambos os vigilantes, se bem que a originalidade dos criadores da Marvel – distantes das idealizações da DC – permitiu-lhes dotar o seu herói mais “realista” de outras proezas e sentido existencial.
Batman inspira medo, o ousado Daredevil é um homem sem medo (talvez por ter sido forçado a tal.) Paralelamente, foi o autor Frank Miller (n. 1957) quem também tornou este herói uma figura igualmente sombria durante os anos 80, fiel às mesmas fórmulas que nos introduziram um Cavaleiro das Trevas combativo, mais duro e impiedoso, cujas histórias realçam esta tensão necessária entre as práticas da justiça e o desejo de vingança, tema recorrente em Daredevil, que opera por demasiadas vezes nas sombras, sujeito a entrar em choque com todas as instituições legais e a própria autoridade.
Quem conhece a série Daredevil e a sua continuidade através da Disney+ deverá agradecer às influências de Frank Miller em histórias de elevada tensão e teor dramático que nos marcam. Mais do que a ação e o realismo de um herói urbano, nunca poderemos deixar de nos impressionar com a sua raiva: Ficamos por demasiadas vezes com a expectativa de que um homem solitário e atormentado, por vezes contraditório e que mantém a sua fé como uma boia de salvação, testado até aos limites, irá acabar por atravessar a famosa linha moral que delineou para si mesmo.
Matt Murdock, ainda que atormentado, não é uma personagem verdadeiramente infernal, seduzido por um autêntico clamor de ordem satânica, rompendo com a imagem de um cristão desiludido que opta por trajar a imagem do maior inimigo da sua fé. Sabe sempre que o Diabo está à espreita. E esta figura invoca mais do que a tentação.
Os fãs incontornáveis de Daredevil podem ser levados a crer que parte da sua história replica a história do Antigo Testamento do Livro de Jó, quando Satanás surge sobretudo para testar a fé de um homem que tudo perde, mas nunca vacila diante da sua devoção de ordem espiritual. Por outro lado, as histórias de Daredevil realçam que os autênticos Diabos são os homens, nunca uma figura evocada pela Bíblia.
Lidar com homens sem escrúpulos, vigaristas, assaltantes, membros da máfia como os mesmos que mataram o seu pai (o boxista Jack Murdock) ou de gangs violentos, assassinos brutais como os ninjas d’A Mão, namoradas perigosas como Elektra, psicopatas imparáveis como Leonard «Bullseye» e homens implacáveis e calculistas como Wilson Fisk Kingpin (retratado de forma excecional nas séries da Netflix e da Disney+ por Vincent D’Onofrio) leva-nos a supor que realmente existem piores demónios com os quais lidar do que puramente aquele a quem chamam de «Diabo.»
O desafio e o confronto estão sempre presentes na vida deste herói quando se trata de interagir com outras personagens, independentemente de o desejarem matar, desmascará-lo ou simplesmente atormentá-lo um pouco mais.
Todavia, respeitando todo o espírito dos criadores originais da BD que motivaram outros autores a explorar a personagem que conhecemos por Demolidor, não podemos deixar-nos equivocar quanto à simbologia do Diabo. O herói não replica puramente a essência da entidade cujo nome provém da palavra grega diabolos ou «caluniador» que é uma corruptela de ordem etimológica adequada à conversão num demónio do antigo deus latino Diano, irmão de Diana.
Em inglês usa-se a expressão «daredevil» para se referir a uma pessoa com audácia, alguém capaz de correr todos os riscos e expor-se a todo o género de situações perigosas. Nunca será por acaso que nos referimos a Matt Murdock e ao seu alter ego de «homem sem medo.»
Após assistirmos a Daredevil: Born Again e ansiar pela sua continuação, só podemos desejar que a Disney+ continue a replicar a mesma receita introduzida pela Netflix durante a(s) próxima(s) temporada(s.) Devido ao trama, às cenas mais intensas, por vezes carregadas de tensão, além da qualidade da ação, para não mencionar o papel dos atores memoráveis, podemos descrever que esta série é o Diabo e muitos não poderiam estar senão gratos por essa escolha. Mais a mais, permite a uma nova geração de leitores voltar as suas atenções para as páginas das revistas com histórias exclusivas sobre esta personagem, redescobrindo-a e reconhecendo, sem hesitar, que no que toca a Daredevil há sempre mais para contar.

Fascinado por História da Arte e pelo Universo Criativo da Ficção, é um entusiasta consumidor de Banda Desenhada além de leitor assíduo de obras de Ficção Científica e de Terror, com particular predileção pelo Oculto e o Sobrenatural