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Análise BD: “Victory Point” – Uma questão de perspetiva

Racionalidade e emoção em tensão — Victory Point representa a solidão com linhas retas, betão armado e a melancolia de uma paisagem costeira.

Uma cidade, uma memória

“Victory Point” de Owen Pomery é uma viagem profunda à memória e ao tempo que passa, contada de forma muito particular. Logo na quinta página, somos apresentados à própria aldeia costeira de Victory Point, um local modernista e inacabado, criado pela imaginação de Pomery. Conhecemos este cenário à medida que Ellen, a protagonista, vai da estação de comboios até à casa do pai.

A primeira imagem da aldeia, com a sua perspetiva única, mostra edifícios muito retos e organizados, em betão, metal e vidro, tons de branco e cinzento. No meio desta ordem, Ellen (em laranja) dirige-se ao único ponto de “desordem”, tendo ali o seu primeiro confronto com o passado.

Ellen cresceu ali, onde o pai ainda vive. Ao longo da sua caminhada, vamos descobrindo a cidade e os seus habitantes. A história, embora calma, tem uma narrativa bem estruturada num arco linear subtil. A jornada de Ellen num único dia serve de fio condutor, com um início, meio e fim claros, tratados com sensibilidade e espaço para a reflexão.

Victory Point

A forma como Pomery desenha os cenários, usando uma perspetiva que nos faz ver as coisas de lado ou de cima (quase como se flutuássemos), torna o seu estilo especial. Em vez de nos “puxar” para dentro da cena, permite-nos ver tudo de forma clara e direta. Os edifícios parecem modelos, mostrando como tudo se encaixa. A página 5 é um exemplo perfeito, onde a paisagem da cidade é mostrada com uma clareza impressionante, sublinhando a sua dimensão. Esta visão intemporal da cidade combina com a ideia de que a memória é algo difuso. O ambiente calmo da história está ligado a este estilo, que nos convida a observar e a sentir sem pressa.

Emoção e Aceitação

A cidade de Victory Point é quase uma personagem viva. A sua arquitetura peculiar, um espelho de mudanças e decadências, choca com a fluidez das emoções humanas. O ritmo da história é lento e convida à reflexão, focando-se mais nos sentimentos do que em grandes acontecimentos. É essencial para a imersão na jornada de Ellen.

A página 50, com a sua vista de cima sobre Ellen no quarto, mostra essa introspeção: não há grandes movimentos, apenas a tranquilidade e a luz, sugerindo uma reflexão profunda sobre o sentido da (sua) vida.

Nesta calma, “Victory Point” toca o sublime. A beleza do desenho de Pomery é evidente, mas o sublime surge da ideia de algo que nos transcende: a imensidão das paisagens, as histórias ocultas por trás dos edifícios e a quietude dos momentos de reflexão. A melancolia do livro, a aceitação da impermanência, é o palco onde o sublime se revela, convidando à reflexão existencial.     

Victory Point    

O desenho racional de Pomery, as cores e o contraste de Ellen com o ambiente sugerem que ela já não se sente em casa em Victory Point, e essa sensação de não pertença persiste mesmo no seu novo lar.

O talento de Pomery é inegável. O belo e o sublime estão sempre presentes, mas ele supera-se quando se afasta do racionalismo. Um bom exemplo é o abraço entre pai e filha, desenhado com um traço solto e emocional que lembra a clareza de Hergé e o humanismo de Rutu Modan. É neste momento que Ellen, apesar de tudo, encontra finalmente o seu lugar de conforto.

Conclusão

No fim, Victory Point não oferece redenção — apenas a persistência do betão, da linha reta e do vazio. A aldeia permanece ali, imóvel, suspensa entre o sonho modernista e a erosão da intimidade, como uma maquete esquecida num mundo sem escala humana. A travessia de Ellen, silenciosa e contida, transforma-se numa meditação sobre a pertença e a solidão. Não há catarse, apenas o eco de passos solitários entre estruturas que nunca chegaram a ser habitadas por uma verdadeira vida. Pomery não nos dá respostas, mas expõe o desconforto: e se o futuro que desenhámos para nós nunca tivesse espaço para o corpo, para a memória, ou para o afeto?

Victory Point

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