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Análise BD: A sombra das luzes – volume 1

Com o argumento de Alain Ayroles e o desenho de Richard Guérineau, dupla bem conhecida por O Burlão nas Índias, este livro regressa ao século XVIII com requinte literário e visual.

Mais uma aposta por parte da Ala dos Livros nesta primeira de três entregas previstas que completarão esta história peculiar.

Aqui temos um  formato epistolar que retoma com sucesso estruturas de estilo Ligações Perigosas, criando um jogo de cartas entre a moral e a vilania. As cartas são do cavaleiro de Saint‑Sauveur, libertino e manipulador, e dão corpo a um anti-herói fascinante e execrável, compondo peças de intriga, sedução e poder.

A transgressão é quase uma personagem por si só, com vícios pessoais, vícios de uma ordem social decadente, vícios de uma era em convulsão.

A Sombra da Luzes (Tomo 1 - O Inimigo do género humano)

Depois temos algo muito diferente em questão de estilo e estética. Esta denominada narrativa epistolar é utilizada como arma política onde cada carta é um golpe, um ato de sedução ou traição, num “vertiginoso jogo de vigarices” que desafia o leitor — com inteligência e humor ácido.

Guérineau recria palácios, salões e recantos secretos do século XVIII com traço refinado. A densidade visual reforça cada nuance da intriga.

A escolha de publicar estas cartas — “contribuirá (…) para o triunfo da Virtude” — traz ambiguidade: é sátira? É redenção? É uma armadilha moral? O texto destaca-se pela leveza crítica. 

A combinação refinada de texto e imagem, torna cada página um dueto dramático.

Temos um anti-herói cativante, que se revela nas linhas escritas e nos olhos dos personagens e Ayroles traz ainda um rigor histórico e uma atmosfera convincente do Iluminismo francês — intrigas, raciocínio e a busca de “luz”. 

A Sombra da Luzes (Tomo 1 - O Inimigo do género humano)

Parece-me no entanto que com apenas 72 páginas, a ação fica curta para quem anseia continuidade e deseja mais profundidade nos secundários.

A trama epistolar exige atenção: o ritmo pode parecer lento para leitores menos pacientes.

Neste primeiro tomo conjuga-se a sobriedade intelectual do Iluminismo com o deleite pictórico de um desenho clássico, transformando o formato ostensivo de cartas em palco — onde a genialidade do libertino de Saint-Sauveur se revela, ao mesmo tempo, sede de prazer e vontade de poder.

Para quem aprecia obras que misturam história, intriga e ironia, e tem afinidade com narrativas bem encadeadas e visualmente ricas, este livro é interessante . Revela-se sedutor o ambiente de “velhos salões à luz de velas”, com jogos de poder disfarçados de elegância, encontra-se com o prazer inquisitivo de quem persegue cada carta como uma pista vital. 

É de salvaguardar que este livro tem que ser lido e pensado em volumes interrompidos — este é um prólogo requintado que antevê mais complexidade nos próximos dois tomos. Vale pelas provocações morais, pelo prazer visual, e pela inteligência narrativa.

A edição portuguesa de A Sombra das Luzes – Volume 1: O Inimigo do Género Humano, é um verdadeiro objeto de desejo para quem valoriza tanto o conteúdo quanto a forma — e não é exagero dizer que ela contribui ativamente para a experiência da leitura.

O formato (255×340 mm) é bem generoso aproxima-se do álbum franco-belga clássico (como Blake & Mortimer ou Thorgal), conferindo imponência e espaço para respirar à arte minuciosa de Richard Guérineau.

A Sombra da Luzes (Tomo 1 - O Inimigo do género humano)

A tradicional capa dura traz acabamento mate e verniz localizado, transmitindo nobreza e solidez — há uma sensualidade tátil que reforça o tema da obra: o prazer dos sentidos e da intriga. Acrescenta-se o papel de alta gramagem, com impressão nítida e cores saturadas, respeitando as tonalidades sombrias, sépia e douradas que evocam o século XVIII com uma precisão quase museológica.

A tradução de Paula Caetano é requintada e cuidada, reproduzindo com elegância a linguagem ornamentada e pérfida das cartas originais. Frases longas, cortesias falsas, insinuações — tudo sobrevive intacto, com riqueza vocabular e cadência fiel à época.

A letra (fonte) escolhida para os textos das cartas e os blocos de narração respeita a estética manuscrita oitocentista sem cair na armadilha da ilegibilidade — um equilíbrio difícil, mas conseguido.

De referir o pormenor da guarda interna com padrão clássico, remetendo a tecidos de época ou papéis de parede dos Boudoirs onde os pecados se escondem atrás de cortinas pesadas.

Temos uma paginação limpa e arejada, com margens amplas que não esmagam a arte nem o texto — parece desenhado para ser lido devagar, com um cálice de vinho ao lado para ser saboreado.

Vou esperar com ansiedade pela continuação e conclusão desta obra para poder deliberar se realmente é uma leitura que vale a pena ou se vale pelo desenho e cenários bonitos. O sentimento de momento é ambíguo, pois no seu todo, a história contada ainda não me cativou… a ver vamos. 

Mas a Ala dos Livros costuma ser certeira nas suas escolhas.

A Sombra da Luzes (Tomo 1 - O Inimigo do género humano)

 

Carlos Maciel

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.

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