Análise manga: Ataque dos Titãs Volumes 1 a 7
Há algo de profundamente desconfortante no universo criado por Hajime Isayama em Shingeki no Kyojin. Ao longo dos sete primeiros volumes, não estamos apenas perante uma distopia pós-apocalíptica — estamos perante uma alegoria visual do trauma coletivo, da biopolítica em estado bruto e da pulsão bélica como força motriz de identidade.
O mangá, publicado pela Distrito Manga, revela-se, sob o seu verniz shonen, uma reflexão brutalmente honesta sobre o medo como instrumento de dominação.
Isayama não desenha bem — pelo menos não no sentido tradicional ou académico. Há, contudo, uma eficácia inquietante na sua estética inacabada e quase grotesca.
Os titãs, com seus sorrisos disformes e corpos nus e desproporcionais, surgem como visões de um pesadelo freudiano: são caricaturas do humano e, portanto, mais humanas do que o aceitável.
A arte serve aqui para desconcertar. A anatomia falha, os rostos distorcem-se, a ação é caótica. Mas é precisamente essa falha que sustenta o tom de angústia — os quadros não querem beleza, querem urgência.
A muralha surge como metáfora total.
Aparece tripla e milenar; é mais do que uma defesa: é o símbolo máximo do poder como ocultação.
Ao longo destes volumes, Isayama constrói pacientemente uma alegoria sobre o confinamento voluntário, sobre a aceitação do desconhecimento como moeda de sobrevivência. O povo dentro das muralhas não quer saber o que está fora — porque o saber implicaria o risco. Há ecos de Foucault, claro, mas também de Kafka: a muralha não é apenas física, é epistemológica.
Eren, Mikasa e Armin não são heróis — são sobreviventes disfarçados de protagonistas. A formação militar a que se submetem é menos sobre estratégia e mais sobre desumanização. Os volumes 4 a 7, centrados no treino e nas primeiras missões reais fora da muralha, expõem com crueza o colapso das idealizações juvenis.
O confronto com a morte é imediato, absurdo e gráfico. Isayama aqui desconstrói os códigos clássicos do mangá shonen: não há vitória sem perda, e mesmo a vitória parece sempre pírrica.
Ao introduzir o conceito do Titã Eren, Isayama ensaia uma inversão perturbadora: o inimigo está dentro. O corpo de Eren, ora humano, ora monstruoso, é palco de uma tensão identitária latente.
O protagonista literalmente transforma-se naquilo que jurou destruir. O mangá sugere, com uma ousadia quase nietzschiana, que não se pode combater monstros sem, de alguma forma, tornar-se um. Há aqui um substrato de crítica à guerra e à radicalização: o soldado e o monstro partilham a mesma carne.
O autor usa o tempo narrativo como tensão. Isayama trabalha com cliffhangers e mudanças bruscas de ritmo com uma mestria que lembra os melhores momentos de Lost ou de Akira.
Os volumes 5 a 7, especialmente, revelam-se engenhosamente montados, alternando flashbacks, reviravoltas e revelações num crescendo dramático. A revelação da identidade dos titãs infiltrados é um dos pontos altos da saga — e já aqui, vemos como o autor semeia as pistas desde os volumes iniciais, num jogo de espelhos que recompensa a releitura atenta.
O maior mérito de Ataque dos Titãs está, talvez, na sua recusa em oferecer consolo. A obra não celebra o heroísmo, mas expõe a violência como herança e como vício. A partir dos sete primeiros volumes, Isayama planta as sementes de um universo onde os antagonismos clássicos — dentro/fora, humano/monstro, certo/errado — colapsam. E nesse colapso, revela-se a verdadeira muralha: a que separa a nossa perceção da nossa própria natureza.
É impossível falar de Shingeki no Kyojin sem abordar diretamente o seu aspeto mais controverso: o desenho. Se há algo que suscita divisões no meio crítico e entre leitores, é a aparente falta de refinamento gráfico nos volumes iniciais. Mas aqui cabe fazer uma distinção importante — e talvez até uma correção de expectativa.
Hajime Isayama não é um desenhador “virtuoso” no sentido técnico, nem pretende sê-lo.
A sua linha é crua, os rostos são por vezes mal proporcionados, e a composição de ação nas primeiras batalhas roça o confuso. Há um certo desleixo deliberado, quase amador, em muitos quadros. No entanto, seria redutor ver isso como falha pura.
O que Isayama parece intuir — e aplicar com consistência — é que o desconforto visual amplifica a dissonância emocional da narrativa. A arte, neste caso, não embeleza o mundo: denuncia-o.
Os titãs são o exemplo mais evidente desta estratégia gráfica. O seu aspeto infantilizado, com expressões congeladas e corpos sem genitália, recorda-nos as figuras de pesadelos ou delírios psicóticos. São deformações grotescas do humano — e é precisamente isso que os torna tão eficazes. O horror não está no detalhe anatómico, mas na perversão do familiar.
Do ponto de vista do enquadramento, Isayama faz uso frequente de composições vertiginosas, aproveitando a tridimensionalidade do movimento — uma escolha formal que ecoa a verticalidade das muralhas e a sensação constante de queda. As páginas em que os soldados usam os equipamentos de manobra são, visualmente, exercícios de desorientação controlada.
O leitor é atirado, junto dos personagens, para o vazio entre os edifícios e os corpos colossais. A leitura torna-se assim não apenas narrativa, mas quase física.
À medida que avançamos para os volumes 6 e 7, nota-se uma melhoria técnica — as feições tornam-se mais legíveis, a ação mais fluida — mas o estilo permanece fiel a uma certa “estética da fratura”. A escolha do preto e branco acentua o contraste, sublinhando os momentos de choque com sombras espessas, planos fechados e silhuetas dilaceradas.
Em suma: a arte de Ataque dos Titãs pode parecer tosca aos olhos habituados à polidez dos grandes mestres de mangá, mas essa tosquice é profundamente funcional.
Não estamos perante um universo que deva ser belo. Estamos perante uma crónica da ruína — e a ruína, como sabemos, nunca é simétrica.
A Distrito Manga é a chancela dedicada ao mangá da Penguin Random House Portugal, lançada oficialmente em junho de 2024, com Ataque dos Titãs como um dos seus primeiros títulos. Após a interrupção da publicação pela JBC Portugal (que chegou apenas ao volume 3 em 2018), o mangá regressa agora com nova editora e continuidade garantida, começando sob nova chancela em junho de 2024 e atingindo o volume 7 em junho de 2025. Podemos esperar descansados pela continuação.
Os volumes têm formato de cerca de 126–127 × 188 mm (aproximadamente B6), com capa mole, o que gera uma sensação de manuseio leve e portátil.
Cada volume possui entre 192 a 200 páginas, em impressão a preto e branco, com tipo de papel que equilibra opacidade e legibilidade. As folhas são suficientemente opacas para evitar transparências.
O preço de capa é de €9,95 por volume, e podemos aguardar pelos descontos habituais.
A tradução é de André Oliveira, com adaptação editorial e de capa levadas a cabo pela equipa da Distrito Manga (entre outros nomes como Sofia Mota e Wonder Studio, segundo a ficha técnica do volume 1). O trabalho gráfico e tipográfico transmite profissionalismo: balões bem posicionados, fontes consistentes, onomatopeias bem transcritas e formato de leitura fluido.
A nível editorial, a Distrito Manga tem sido elogiada pela sua consistência nos prazos de lançamento, especialmente considerando que lançam volumes mensais em sequência — algo valorizado pela comunidade da banda desenhada.
Aguardemos pela continuação…

O Carlos gosta tanto de banda desenhada que, se a Marvel, a DC, os mangas, fummeti, comic americano e Franco-Belga fundissem uma religião, ele era o primeiro mártir. Provavelmente morria esmagado por uma pilha de livros do Astérix e novelas gráficas 😞 Dizem que cada um tem um superpoder; o dele é saber distinguir um balão de pensamento de um balão de fala às três da manhã, depois de seis copos de vinho e um debate entre o Alan Moore e o Kentaro Miura num café existencial em Bruxelas onde um brinde traria um eclipse tão negro quanto dramático, mas em que a conta era paga pelo Bruce Wayne enquanto o Tony Stark vai mudar a água às azeitonas.






