“Até Acabar com o Diabo”: uma minissérie que resgata o imaginário popular português
O imaginário popular do interior português, feito de superstição, boatos, fé, humor negro e histórias repetidas à lareira, é o coração de Até Acabar com o Diabo, uma nova minissérie criada e realizada por João Canuto, cineasta autodidata que há mais de uma década trabalha fora dos circuitos tradicionais da produção audiovisual.
Adaptada da obra de António Manuel Venda, a série propõe uma viagem ao Portugal profundo dos anos 90 — tempo de infância para muitos — quando as crianças ainda jogavam à bola na estrada, os rádios tocavam música pimba e os segredos raramente sobreviviam à primeira ida à tasca. Ao longo de seis episódios de 50 minutos, a narrativa constrói-se como um mosaico de memórias, boatos e fantasia, onde o realismo cru convive com o absurdo e o sobrenatural.
A história decorre na aldeia fictícia de São Bartolomeu das Osgas, um microcosmo onde todos se conhecem e tudo se comenta. É aí que vive Francisco, um pintor franzino, alvo de troça e desconfiança, cuja vida muda quando se casa com Adelaide, uma costureira recém-chegada e de beleza desconcertante. O aparente sossego é interrompido pela chegada de uma figura grotesca — Avelino da Cruz, conhecido como “o Diabo” — um homem desfigurado por um ato de vingança brutal. Quando Adelaide surge morta, Francisco, até então incapaz de ferir uma mosca, jura vingança.
A série é narrada a partir da memória fragmentada de Francisco, já preso, enquanto relata os acontecimentos a um Doutor que o escuta com curiosidade clínica. A partir desse ponto, a narrativa desdobra-se em três camadas: o presente da confissão, o passado do amor e da tragédia, e o imaginário coletivo da aldeia — feito de mexericos, superstições e reinvenções constantes. “Quem conta um conto, acrescenta um ponto” torna-se regra estrutural e ética da série.
Povoada por personagens tão trágicas quanto cómicas — do Compadre Sabiniano ao incompetente Cabo da Guarda, passando por animais falantes e figuras quase mitológicas — Até Acabar com o Diabo assume uma identidade estética singular. As referências vão dos Irmãos Coen a David Lynch, cruzando-se com ecos de Aki Kaurismäki e um retrato muito português da ruralidade tardia do século XX. O resultado pretende ser um neo-western noir à portuguesa, onde a violência, o humor e o lirismo coexistem.
Para João Canuto, o projeto nasce de uma memória pessoal e coletiva. “Cresci rodeado por histórias de lobisomens, bruxas e maus-olhados, contadas pelas minhas tias-avós como quem fala da vida quotidiana. Esse imaginário moldou a minha relação com as narrativas”, explica o realizador. Mais do que adaptar uma história, o cineasta procura transformar essa herança oral numa obra cinematográfica que valorize Portugal sem folclore fácil, explorando temas universais como o amor, a perda, a vingança e a necessidade de contar histórias.
Produzida em regime independente e sem orçamento tradicional, a minissérie conta já com 25 minutos filmados, de um total previsto de seis episódios, e o projeto tem vindo a reunir o apoio de várias entidades e câmaras municipais.
No dia 30 de janeiro de 2026, às 21h30, o Hotel dos Cavaleiros, em Torres Novas, recebe um evento exclusivo de apresentação do projeto, com a presença do elenco e da equipa, participação especial de António Manuel Venda, exibição de um excerto de 25 minutos, sessão de perguntas e respostas e o lançamento oficial da campanha de crowdfunding que visa financiar a produção integral da minissérie.
Depois de mais de 50 obras e sete longas-metragens realizadas em regime guerrilha desde 2014 — com passagem por festivais como o Fantasporto 2025 — João Canuto reafirma, com Até Acabar com o Diabo, uma visão de cinema profundamente enraizada no território, na memória e na oralidade portuguesa. Uma obra que olha para o passado para falar do presente, e que transforma a aldeia num espelho universal da condição humana.
Começou a caminhar nos alicerces de uma sala de cinema, cresceu entre cartazes de filmes e película. E o trabalho no meio audiovisual aconteceu naturalmente, estando presente desde a pré-produção até à exibição.




